Edição 03
Mar/Abr
2024

Raso da Catarina

Formações rochosas esculpidas pelo vento lembram castelos, torres de templos/ Foto: Agência Atendtur

Os mistérios e desafios da Caatinga

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Nenhum caçador de cangaceiro, mesmo acompanhado de soldados, tentou pegar Lampião em seu esconderijo mais frequente, usado durante quatros anos desde que fugiu para a Bahia: o Raso da Catarina. O temor geral de quem vinha de fora, não só as volantes, era enfrentar as difíceis condições climáticas, de locomoção e sobrevivência nos seus 6.400 km², a região mais árida do estado.

Virgulino sabia onde encontrar água, alimentos e se abrigar – aprendeu com os novos amigos e protetores, habitantes do local, os Pankararé. Mais de 20 deles se integrariam ao bando. Quase meio século antes, antecessores desses indígenas abrigaram por alguns dias, no mesmo lugar, o líder religioso Antônio Conselheiro em suas andanças pelo sertão baiano. Os descendentes dessa etnia vivem lá até hoje em duas aldeias, no Brejo do Burgo e na Baixa do Chico, que estão abertas à visitação.

O Raso da Catarina oferece atrações tanto aos interessados na história do Rei do Cangaço quanto a quem deseja ver de perto uma natureza diferente. A vegetação característica da caatinga, as plantações de palma – tipo de cacto utilizado pelos sertanejos para alimentar os animais durante a estiagem –, os paredões de arenito do cânion seco, a revoada de pássaros raros no início das manhãs e o entardecer deslumbrante.

Foto: Instituto Chico Mendes

Todo cuidado é pouco

O visitante não passará pelos temores de outrora, desde que se prepare adequadamente. Em Paulo Afonso, poderá alugar carro e contratar um guia especializado.

Situado entre seis municípios – Paulo Afonso, Rodelas, Chorrochó, Canudos, Abaré e Jeremoabo –, o Raso da Catarina tem longos períodos de seca brava e temperaturas que variam de 10º à noite a mais de 40º durante o dia.

O turista precisará se hidratar bem. Protetor solar não será suficiente; deverá usar roupas especiais como as dos surfistas e pescadores. Circulando com um veículo motorizado, poderá ver tudo de perto e até escalar formações rochosas.

Com um carro comum, chega-se ao Brejo do Burgo, que reúne o maior número de índios Pankararé. Já para ir à Baixa do Chico, onde vive parte dessa etnia, é imprescindível que o carro tenha tração nas quatro rodas. As duas povoações habitam pontos diferentes do mesmo cânion seco, mas os caminhos que levam a elas são diferentes.

A beleza azulada no contraponto ao vermelho escaldante da caatinga/ Foto: Instituto Chico Mendes
A beleza azulada no contraponto ao vermelho escaldante da caatinga/ Foto: Instituto Chico Mendes

Arara Azul. O sobrevoo sob o sol sertanejo

O pequeno réptil, o mico, o veado Mazama e a onça parda podem ser vistos de perto ou ao longe no Raso da Catarina. Em contraste com os discretos tons ocres e avermelhados da paisagem, uma das visões que mais encantam os visitantes são as cores fortes da arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari): azul-cobalto na cauda longa, nas asas e nas costas, azul-esverdeado na cabeça e no pescoço e apenas na barriga o azul é desbotado.

Embora ameaçada de extinção, a revoada matinal em bando desses pássaros se mantém como uma das melhores atrações do cânion seco. Para assisti-la de maneira organizada, há duas opções de locais em que instituições protegem os dormitórios das araras-azuis-de-lear: a Toca Velha, em Canudos, e a APA Serra Branca, em Jeremoabo – ambas situadas em áreas diferentes do Raso da Catarina.

Se a escolha for a Toca Velha, e pra chegar em tempo de ver a revoada, o turista deverá sair do hotel ou alojamento às 4 horas e usando roupas de cores fracas para não espantar as araras. Acompanhado de um guia, seguirá num veículo 4×4 até a área de 1.500 hectares guardada pela Fundação Biodiversitas.

A sequência será a pé por uma trilha que leva ao alto de um paredão de arenito e o mais próximo possível das palmeiras prediletas dessas aves – ali, elas se escondem e se alimentam de seu fruto, o coquinho licuri. Poderá, então, usufruir do espetáculo: os pássaros azuis partindo em bando para outro ponto do cânion, enquanto o vermelho amarelado do nascer do sol vai colorindo tudo ao redor.

Na tela do cinema

Está faltando nessa paisagem uma parente próxima da arara-azul-de-lear, a ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), de tamanho menor e também natural da caatinga, que ganhou fama mundial como personagem da série de filmes “Rio”. No entanto, em 2000, a espécie já foi considerada extinta na natureza, mas hoje há a esperança de que volte a viver em seu habitat.

A ONG alemã Associação para a Conservação de Papagaios Ameaçados (ACTP), junto com outras instituições, vem trabalhando para isso. Montaram centros de reprodução da ararinha-azul na Alemanha, em Minas e na zona rural de Curaçá, na caatinga baiana, onde dezenas dessas aves começaram a ser soltas no ano passado.

O museu da Rainha do Cangaço

A 38 km do centro de Paulo Afonso, no povoado Malhada da Caiçara, chega-se por uma estrada de terra a um amplo terreno rodeado de estacas baixas e tendo no meio uma bem cuidada casinha de barro batido. Na entrada, a placa anuncia que se trata do Museu Casa de Maria Bonita. Ali, Maria de Déa nasceu, em 1911, cresceu e, aos 17 anos, conheceu Lampião, conduzido por um coiteiro que era tio dela. Um ano depois, Virgulino voltou e a levou para o cangaço.

No início deste século, embora apodrecidas, restavam as estacas das paredes e as do teto com muitos buracos vazios no reboco que esfarelava.

A antiga casa da família é hoje museu de referências de parte da história do Brasil/ Foto: Jornal Folha Sertaneja
A antiga casa da família é hoje museu de referências de parte da história do Brasil/ Foto: Jornal Folha Sertaneja

Foi assim que, em 2003, o historiador João de Sousa Lima encontrou os quase escombros do típico lar sertanejo da família. Foi o mentor e realizador da transformação da casinha em museu, inaugurado em 2006.

Na casa, há utensílios e móveis originais, como um baú e um banco de madeira preservado na varanda de entrada, além de um acervo de fotos de Maria Bonita no cangaço exposto nas paredes dos cômodos. A visita deve ser agendada pelo telefone (75)98807-4138.

Onde Lampião falava com Deus

Capela recuperada, construída por D. Generosa Gomes de Sá, com as estrelas de seis pontas do chapéu do Rei do Cangaço/ Foto: Jornal Folha Sertaneja

Pode-se também chegar ao museu como destino final de um percurso turístico que passa pelas principais áreas frequentadas por Lampião e bando em Paulo Afonso. O roteiro sai do centro da cidade em direção ao povoado Baixa do Boi, junto à Lagoa do Mel, onde os cangaceiros mataram 19 soldados e Ezequiel, irmão de Virgulino, morreu metralhado.

Os pontos seguintes de importância histórica ficam no caminho em direção à Serra do Umbuzeiro.  No início da subida, em Riacho, encontra-se a capela construída por Dona Generosa, coiteira de Lampião. Ali, o Rei do Cangaço assistia à missa de domingo sempre que se acoitava na região.

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