Edição 03
Mar/Abr
2024

Esmola cantada

Dona Joanice puxa a Esmola Cantada, batendo de porta em porta/ Foto: Acervo Casa Mestre Ananias

São Cosme e São Damião saiu hoje a passear, a passear...

Mário Paulista

Acomodados em uma simpática caixinha enfeitada de papel-de-presente, folhas de jamaica ou melindre e flores de mal-me-quer, os santos mabaços em humilde jornada percorrem ruas e vielas, longas estradas de terra e picadas no mato, para visitar seus devotos.

Não vão sozinhos e nem são os únicos enfeitados no cortejo, marcado por simpáticos chapéus de palha derramando fitas de papel crepom. São animados pelo baticum de pandeiros e tambores, palmeados e o repicado de violas, violões e cavaquinhos, em deliciosos sambas de desafio e louvor: “Cosme e Damião, vivá! Cosme e Damião, vivá! Quem tá na Terra, vadeia, e quem tá no céu vai rezar”, gritam os sambadores nos tradicionais versos de chulas, relativos e corridos.

Recebem sua esmola – que pode ser em espécie, mas também em velas, foguetes, ovos, farinha e quanto mais recursos necessitem sua festa – e adentram as moradias, emocionam e alegram os fiéis do lugar.

De pronto, acomodados em uma mesa ou oratório, às vezes improvisados num rack na sala ou até num simples tamborete, os santos escutam em silêncio o solo do cavaquinho que introduz a valsa tirada pelo tirador de esmola: “São Cosme e São Damião… Saiu hoje a passear, visitando os moradores, sua esmola vem buscar!”

O coro responde, embalando a cantoria: “Tirando esmola… Com muita alegria! Louvores no Céu e na Terra, quando chegar o seu dia!”. Se a valsa, às vezes, tem ritmo de arrastada reza, os versos finais não deixam dúvidas sobre a urgência de percorrer outras casas, em longa excursão que muitas vezes dura um dia inteiro: 

Foto: Mário Paulista

– Lá no Céu, tem um relógio… que marca a hora de meio-dia! São Cosme e São Damião fique em sua companhia! Ele é quem nos acompanha, Jesus, José e Maria”.

Finda a valsa, os sambadores puxam corridos de samba, para regalo ligeiro da dona da casa, que sapateia no meio da roda: “A primeira roda é da dona da casa! A primeira roda é da dona da casa!”.

Os sambadores temperam a festança dos santos erês

Sambadores do Quilombo do Engenho da Ponte (Cachoeira/BA)/ Foto: Mário Paulista
Sambadores do Quilombo do Engenho da Ponte (Cachoeira/BA)/ Foto: Mário Paulista

Se algum desavisado perguntar do que se trata, ouvirá provavelmente dos moradores mais velhos: “É a Esmola Cantada para São Cosme e Damião”. Tradição popular em algumas regiões do Recôncavo Baiano, como a Costa de Saubara, o Vale do Iguape, a velha zona canavieira da Muribeca, em São Francisco do Conde, a Esmola Cantada é ritual cada vez mais raro, mas teimosamente mantido por devotos dos mais variados santos – São Roque, Nossa Senhora da Soledade, São Tiago, a Divina Santa Cruz – nas comunidades da região.

É que festejar os santos, em novenas, trezenas, tríduos ou carurus, sempre exigiu aportes vultosos para a miúda gente de sua devoção, que tinham na Esmola Cantada meio para ajuntar os recursos necessários. Mas não só: a visita dos Santos – normalmente em quatro domingos que antecedem sua festa, cada um em um vilarejo vizinho – é dádiva ansiosamente aguardada nas comunidades, articulando identidades, fé e laços de solidariedade entre o povo da região.

No Acupe, distrito de Santo Amaro, a mais comum era a festa de São Cosme e Damião, santos gêmeos, donos da devoção mais popular da Bahia. Dos tempos de outrora, liderada pela velha Amélia, a Esmola Cantada e seus versos, melodias e rituais é hoje cuidadosamente zelada pelo filho Eloi Bispo Silva.

Festejados sobretudo em setembro, também outubro costuma acolher a comemoração, afinal, se setembro é “mês de São Cosme”, outubro é de “Crispim e Crispiniano”, também eles santos-irmãos médicos, pertencentes à “falange de São Cosme”: “Se não der seu caruru a Cosme em setembro, pode dar em outubro que ele aceita”, aconselham os devotos mais antigos.

Mártires da fé cristã no século III em Egeia, na atual Síria, canonizados no ano 630 d.C. pelo papa Félix IV, os gêmeos médicos Cosme e Damião foram identificados na Bahia com Ibêji pelos nagôs e Vunji pelos bantos, deidades africanas ligadas ao fenômeno da gemelidade.

Quiabo na mesa dos ricos

Também associados aos erês nas religiões de matriz africana, logo São Cosme e Damião se tornaram santos popularíssimos não só entre os afrodescendentes baianos, mas entre todos os devotos católicos do estado. Desde fins do século XIX, estudiosos como Nina Rodrigues registravam, algo desconcertados, como elementos afro-católicos do culto aos santos gêmeos integravam a fé e a liturgia devocional de famílias da elite baiana.

O Caruru de “Cosmedamião” – também carinhosamente chamado “Dois-Dois” ou “Cosminho”, festejo que toma emprestado o nome do tradicional prato à base de quiabo e azeite-de-dendê da culinária afro-baiana, em geral se oferece como agradecimento ao parto bem-sucedido de gêmeos ou pagamento de uma promessa pelo devoto.

Os mestres puxam a sambadeira à cada porta aberta para os santos./ Foto: Mário Paulista
Os mestres puxam a sambadeira à cada porta aberta para os santos./ Foto: Mário Paulista

Os preceitos religiosos que envolvem seu preparo costumam ser passados oralmente pela tradição familiar, resultando em liturgias domésticas diversas e plurais. E como quase tudo que é sagrado na Bahia, não costuma faltar samba em seus carurus: os sambadores do Recôncavo por vezes se referem ao seu tradicional “samba-chula” ou “samba-de-viola” simplesmente como “samba-de-caruru”.

 Acaba a reza, distribuídos os pratos aos meninos – em grupos de sete, comendo à mão por sobre uma toalha branca estendida no chão –, os sambadores podem mais um ano amanhecer o dia gritando: “Cosme e Damião, ó meu Pai Soberano, se eu não morrer… até para o ano!”

Mário Paulista, historiador e músico

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