Edição 03
Mar/Abr
2024

Rio Vermelho

Barquinhos ao pôr do sol na Praia de Santana/ Foto: João Lins

Paraíso romântico, libertário e boêmio desde Caramuru

Oscar Paris

O comportamento eclético do fidalgo Diogo Álvares Correia, náufrago que entrou para a história sob a alcunha de Caramuru, talvez explique a vocação romântica, libertária e progressista do Rio Vermelho, o bairro mais boêmio da primeira capital do Brasil.

Resgatado das pedras na foz do rio Camurugipe (depois batizado Rio Vermelho), Caramuru casou-se com a tupinambá Paraguaçu, filha do Cacique Taparica, com quem teve quatro meninas: Ana, Genebra, Apolônia e Graça. Outros 9 filhos, sabe-se lá com quantas mulheres, também são frutos do português mais abaianado que já pisou por estas bandas. São eles: Gaspar, Marco, Manoel, Diogo, Felipa, Madalena, Helena, Isabel e Catarina, fora os não contabilizados.

Caramuru, considerado o pai biológico do Brasil, não só descobriu a enseada nas primeiras décadas do século XVI, como colaborou pessoalmente para o povoamento do arraial. Estudiosos calculam descendentes que podem chegar a 50 milhões de brasileiros. Todos com a água do Red River no DNA.

Odoyá, dia de festa no mar

E o lugar é mesmo paradisíaco. São apenas três quilômetros de Costa Atlântica, entre os bairros de Ondina e Amaralina, com três praias convidativas e diferentes: o Buracão, com ondas e galera descolada, e a Paciência, de piscinas naturais.

Entre as duas, está a Praia do Rio Vermelho, território dos barcos da Colônia de Pescadores e de onde seu ‘Branquinho’, 70 anos, o mais velho, tira o sustento há mais de meio século. “Trabalho em cima da água, onde já fiquei por 24 dias seguidos. Só com muita fé em Deus e na rainha do mar”.  A devoção revela porque, há exatos 100 anos, saem dali as oferendas para Iemanjá, cuja “Casa”, com imagens e objetos icônicos da orixá – espelhos, contas e flores –, no 2 de Fevereiro, dia de saudar Odoyá!

Presentes, pedidos e agradecimentos à rainha do mar/ Foto: Sérgio Pedreira

Um dos pontos de observação da Festa de Iemanjá é o Mirante Ubaldo Marques Porto Filho, escritor que deixou 14 livros, a exemplo do “Rio Vermelho, de Caramuru a Jorge Amado”. 

Essas e outras preciosidades estão entre os 25 mil títulos da Biblioteca Juracy Magalhães Jr., na rua Borges dos Reis. “A biblioteca pulsa junto com o bairro porque moradores e visitantes, de uma maneira geral, consomem cultura”, assegura Elzimar Oliveira, diretora.

Igreja de Sant’Ana

Jorge e Zélia, tranquilos, à porta da Igrejinha de Sant’Ana/ Foto: João Lins

A terra do sincretismo já foi mais pródiga quanto à convivência pacífica entre as religiões. Prova disso é que o caramanchão onde são depositados os presentes para Iemanjá, ano após ano, ao lado da Paróquia de Sant’Ana. “Vivemos em plena harmonia. A casa de Nossa Senhora fica ao lado da morada de Iemanjá. São nossas duas mães”, simplifica Robson do Agogô, um dos guardiões da gruta construída em 1972.

Desde 1960, a paróquia promove os atos litúrgicos antigamente realizados na Igreja de Nossa Senhora de Sant’Ana, a famosa “igrejinha”, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desde 1984. Uma relíquia. Em 1580, era apenas uma ermida de taipa coberta com palha. De frente para o mar, tinha como função catequizar os tupinambás em nome da Companhia de Jesus.

A Casa dos Amado

Graças à obra do artista Tatti Moreno, o casal mais famoso do bairro, Jorge Amado e Zélia Gattai, “contempla”, sentado à frente da igrejinha, a bucólica enseada. A escultura ilustra a íntima ligação de Jorge e sua família com o bairro: 40 anos de encantamento, produção literária e confraternizações, com celebridades e a nata da contracultura a dois quilômetros do Largo de Santana, na rua Alagoinhas, 33, endereço da icônica Casa do Rio Vermelho.

Com as bênçãos de Oxóssi e Oxum, o casal criou os filhos João Jorge e Paloma, e fez da casa berço de sucessos como “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, “Quincas Berro D’água”.

Pela piscina e jardim sensorial, passearam personalidades do século XX, como os filósofos Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir, o poeta Pablo Neruda, além dos geniais Carybé, João Ubaldo, Dorival Caymmi e Glauber Rocha.

Transformada na “Casa Museu do Rio Vermelho”, com decoração original, acervo de livros, mobiliário e objetos de uso pessoal. Momentos íntimos raros de um casal de imortais da Academia Brasileira de Letras.

A morada onde se depositaram no jardim as cinzas dos avós sempre foi a “casa dos sonhos” para a neta Maria João. “Abrir a casa para o público me traz uma sensação de dever cumprido, já que este era um desejo de minha avó Zélia”, segreda Maria João.

A velha máquina, onde nasceram Gabriela, Tieta do Agreste, Quincas Berro D’Água.../ Foto: João Lins

Onde a noite é uma criança

Conversa afiada, regada pelos encantos noturnos/ Foto: Divulgação

A noite do Rio Vermelho, com seus bares, shows e gastronomia diversificada, é uma das mais movimentadas de Salvador. O som tipo voz e violão rola solto no antigo mercado do Rio Vermelho, hoje endereço de restaurantes de grife.

E por falar em balada, uma boa pedida é começar a noite com os shows que rolam no primoroso Casarão do Sesi, na rua Borges dos Reis, número 9. A Casa da Mãe, referência de boa música e diversidade, também é uma ótima pedida, casarão secular, rua Guedes Cabral, 81, de frente à praia dos pescadores.

Mas se a ideia é esticar a madrugada, todos os caminhos levam para o sempre efervescente bar e boate Borracharia, um oásis na quase pacata rua Conselheiro Pedro Luiz, ou ao tradicional Boteco do França, na Borges dos Reis, 24.

Alimentar o corpo antes de libertar a alma pelos encantos do Rio Vermelho basta definir sua preferência, já que o bairro oferece desde deliciosos aperitivos de boteco, passando pelos apimentados tacos mexicanos, até massas italianas, paellas espanholas, pratos orientais e mediterrâneos, incluindo churrasco, pizza e a sempre típica e sedutora comida afrobaiana.

São três quilômetros para o mais faminto dos mortais fartar-se com as melhores receitas e temperos. Isso sem falar no restaurante Póstudo, aberto há mais de 30 anos, e nas cervejarias artesanais que pipocam pelos quatro cantos do Rio Vermelho.

Tem arte neste carrinho

Entre balaios de amendoim, artesãos e vendedores ambulantes, uma personagem destaca-se pelas ruas do Rio Vermelho desde 2009. A artista multimídia e filósofa Ana Dumas fez do indefectível Carrinho de Café uma estação de arte, compartilhando com o público o que ela chama de “fragmentos do século XXI”, por meio de performances, vídeos, gifs, imãs, stencils e, claro, pelo discurso.

Com o Carrinho de Café, já rolou O Curto Circuito, manifesto pelo fim das cordas no Carnaval, o Cortejo Oferenda de Iemanjá e o Furdunço, além de participações em eventos escolares e internacionais, como 16a Bienal de Cerveira, em Portugal, o Gay Pride, em Roma, e o Valongo Festival, em Santos.

“Como profissional IJ (Ideas Jockey), precisava de um mixer, assim como o DJ e o VJ. Daí surgiu o projeto do Carrinho Multimídia”, explica Ana Dumas.

É o Rio Vermelho exportando gente e arte para os quatro cantos do mundo, como ensinou o bem-aventurado Diogo Caramuru.

Ana Dumas e sua estação móvel de arte/ Foto: Helton Reis

Oscar Paris, jornalista e escritor

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