Almanaque da Bahia
O trovador que botou a boca no trombone
Não se sabe, em verdade, de onde veio o apelido Cuíca de Santo Amaro que José Gomes ganhou em vida (1907-1964). Há quem diga que por tocar violão interior adentro, viajando na boleia de caminhão, um motorista deu-lhe a alcunha. Já outros falam que o poeta casou-se, em 1935, com a santamarense Maria do Carmo Sampaio, com quem teve cinco filhos, e era quase um deles.
Mas o fato é que Ele, o tal, como se apresentava, nasceu no bairro de Nazaré, região central de Salvador. Terminado o primário no tradicional Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, trabalhou em tinturaria, no trapiche de fumo e como cobrador de bonde. Um cidadão comum até se transformar no personagem inventado por ele mesmo.
O jurista e compositor Carlos Coqueijo o descreve:
“De chapéu de coco, óculos escuros (tinha uma vista defeituosa), fraque, suando em bicas, declamava com todo o peito a sua terrível versalhada, nas escadarias da prefeitura, nos trens, nas feiras, no mercado, no Elevador Lacerda, e acabou no cinema, cantando, ele próprio, a desgraça da Feira de Água de Meninos, no filme de Roberto Pires que levou esse nome, e encarnado por Zé Coió no ‘Pagador de Promessas’”.
Os temas fascinavam a multidão, na velha São Salvador dos anos 40 e 50. Era um destruidor de reputações. Um Gregório de Mattos sem o polimento da gramática. Jorge Amado traça o perfil do trovador urbano:
“Tudo quanto acontece na Bahia e no mundo é tema para a poesia de Cuíca: assassinatos e roubos, vida cara, raptos românticos e tempestades que naufragaram saveiros. Seus folhetos são jornal e livro, informação e cultura, comentário social e econômico, ironia e crítica, poesia e panfleto. Escreve desafios, ABCs, histórias nos ritmos populares da redondilha. É autor, editor, chefe de publicidade e livreiro ambulante”.
“Muita gente deixou de fazer coisa ruim com medo dele”, disse o padre Gaspar Sadoc em depoimento para o filme “Cuíca de Santo Amaro, Ele o tal!”. O religioso interveio algumas vezes para evitar agressões a Cuíca, mas também para lhe pedir moderação nos cordéis. O cineasta Glauber Rocha o definia assim: “figura mitológica”.
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Se eu fosse governador
Você sabe o que eu fazia?
Primeiro baixava os impostos
De uma noite para o dia
Para acabar de uma vez
Com toda patifaria.
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Me parece que os jornais
Da Bahia são comprados
Pois fatos palpitantes
Nunca foram publicados
Os jornais sabem escrever
Porém o que interessa
Fica o povo sem saber
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Este foi o triste fim
Que teve a Mulher de Brotas
Na Ladeira do Cabral
Bem perto das Sete Portas
Bem na boquinha da noite
Quando as horas eram mortas
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Aqui dentro da cidade
Sempre se dá isto
Muita gente não sabe
Como se deu o sinistro
As vezes o proprietário
É sempre quem paga o Cristo.