Edição 04
Agosto
2024

Deus e o Diabo no sertão da Bahia

Jary Cardoso

 

As andanças do Capitão Virgulino, sob o sol inclemente que aquece e ilumina a região norte da Bahia, foram marcadas por batalhas violentas, perseguições implacáveis, estratégias ardilosas, fugas espetaculares, traições, vinganças e muitos momentos de amor, de calma, de descanso e festa. Há quem diga que jornalistas, pesquisadores e historiadores exageram e tentam transformar um facínora em herói, um bandido em justiceiro.

Virgulino Ferreira, o Lampião, e Maria Bonita/ Foto: Benjamin Abrahão
Virgulino Ferreira, o Lampião, e Maria Bonita/ Foto: Benjamin Abrahão

De qualquer modo, a passagem de Lampião pela Bahia é uma história fascinante, que até hoje rende livros, filmes, novelas e acaloradas discussões. Desde o “Massacre na Lagoa do Mel” até seu caso de amor com Maria Bonita, Virgulino fez por merecer ser amado ou odiado, anjo ou demônio, rei do bem ou do mal. Conheça mais um pouco da trajetória do Rei do Cangaço.

Massacre na Lagoa do Mel

– Capitão, a polícia tá aí! E tá com pessoal de Salvador.

No anoitecer de 23 de abril de 1931, quem traz o aviso a Lampião, escondido numa casa do povoado Arrasta Pé, em Paulo Afonso (BA), é Ozéias, um de seus protetores, chamados coiteiros. Ele vinha de Riacho, outro povoado, distante 20 quilômetros. Vira chegar uma volante com dezenas de soldados armados até com granadas, sob o comando do tenente Arsênio Alves de Souza, que portava uma Hotchkiss – metralhadora com câmara para cartucho de 8 mm. A missão era prender Pedro Gomes por abrigar Lampião, e estavam dispostos a enfrentar o cangaceiro, caso o encontrassem.

Três anos antes, o Rei do Cangaço atravessara o Rio São Francisco para refugiar-se na região norte da Bahia. Policiais de vários outros estados do nordeste o procuravam. A perseguição aumentara depois de junho de 1927, quando o bando ousou invadir, pela primeira vez, uma cidade grande, Mossoró, na época a maior do Rio Grande do Norte, embora tenha sido expulso pelos tiros de moradores que haviam se preparado para o confronto.

Após essa derrota, Virgulino migrara pra Bahia com a intenção de se recolher por um tempo, mas não demoraria o seu envolvimento em conflitos. O combate da Lagoa do Mel seria o mais sangrento ocorrido em território baiano.

A morte do irmão

Calejado por tantos anos de cangaço, iniciados em 1921, o Capitão Virgulino ouve o aviso sobre a chegada da volante e entra em ação imediata com a estratégia costumeira: vai surpreender o inimigo antes que ele o ataque. Convoca o irmão Ezequiel, mais Corisco e Ângelo Roque, acoitados nas proximidades, e ordena que mobilizem seus homens para mais uma batalha. Divididos em bandos, seguirão a pé durante a madrugada até o local apontado por Ozéias.

Ao saber que os policiais iriam acampar de noite junto à Lagoa do Mel, no povoado da Baixa do Boi, Lampião tem uma ideia para ludibriar seus perseguidores. Antes de partir, vai até a fazenda de Pedro Gomes e apanha alguns chocalhos.

Ezequiel Ferreira, irmão de Lampião/ Foto: Benjamin Abrahão
Ezequiel Ferreira, irmão de Lampião/ Foto: Benjamin Abrahão

O dia amanhece no acampamento da volante já cercado pelos cangaceiros, que balançam chocalhos e se aproximam rastejando. O barulho deixa os soldados tranquilos, seriam apenas caprinos que chegam pra beber água. Surpreendidos pelo repentino tiroteio vindo de três direções, 19 “macacos” caem mortos. Entre os que conseguem escapar, mais três seriam abatidos na fuga.

Na retirada, o tenente Arsênio faz dois disparos com a Hotchkiss e ela emperra, mas os tiros são suficientes pra causar uma grande perda a Lampião: seu irmão mais novo, Ezequiel Ferreira da Silva, o Ponto Fino, apelido ganho pela pontaria precisa, está morto.

Vingança incendiária

A dor pela perda do irmão Ezequiel se transforma em violento desejo de vingança. Conta-se  à época, que foi achado um manuscrito, dirigido ao comando da volante, que aponta os lugares onde Lampião circula e se esconde nessa região. As informações, verdadeiras ou não, são atribuídas a Petronilo de Alcântara Reis, o Coronel Petro, rico latifundiário e chefe político da cidade de Glória (BA), cujos domínios se estendem à vizinha Paulo Afonso – fora o primeiro coiteiro dele na Bahia e agora vira inimigo mortal.

Depois que atravessou o São Francisco, em agosto de 1928, foi com o Coronel Petro que o Rei do Cangaço manteria fortes laços de amizade e parceria em negócios. Mas o clima de apoio mútuo não durou. Segundo boatos da época, o capitão fugira de Pernambuco com muito dinheiro e teria entregue quantia alta a Petro pra comprar terras e gado.
A desconfiança de Lampião selou o destino do fazendeiro.

Cel Petronilo de Alcântara Reis, o Petro, amigo e coiteiro de Lampião, 
teve 18 fazendas incendiadas
Cel Petronilo de Alcântara Reis, o Petro, amigo e coiteiro de Lampião, teve 18 fazendas incendiadas

A primeira vingança aconteceria dias após o combate na Lagoa do Mel, ainda em abril de 1931. À frente de 21 homens do bando e durante um mês, o grupo de Lampião roubou pertences, matou o gado e botou fogo em 18 propriedades do coronel na região. Começou por Glória, reduto político de Petro, cruzou o Raso da Catarina e seguiu para Várzea da Ema, em Chorrochó.

O coronel contratou meia centena de jagunços em Pernambuco, mas não deram conta de defender seu patrimônio. A única das propriedades atacadas ainda hoje de pé e que pode ser visitada é a Fazenda Paus Pretos, também em Chorrochó. “Nos tornos de madeira da sede, restam as marcas escuras do fogo” – diz João de Sousa Lima, escritor e estudioso do cangaço.

A turma de frente na batalha. Lampião (1), Corisco (2), Ezequiel (3), Fortaleza (6) e Revoltoso (8) Foto: Benjamin Abrahão
A turma de frente na batalha. Lampião (1), Corisco (2), Ezequiel (3), Fortaleza (6) e Revoltoso (8) Foto: Benjamin Abrahão

Primeiros tempos na Caatinga

Violências como essas contrastam com os primeiros tempos de Lampião na Bahia, dedicados ao repouso ou aos gastos exagerados em bailes, festas, rodeios e vaquejadas. Ele só reapareceu no noticiário policial três meses depois da chegada, quando retornou à vida nômade com o objetivo de levantar recursos, aliciar homens para o bando e planejar ações futuras. Em 15 de dezembro de 1928, passou o dia na Vila do Cumbe (atual Euclides da Cunha), intimou fazendeiros a lhe darem dinheiro, almoçou e bebeu cerveja com o delegado, enquanto alfaiates produziam novas roupas para os cangaceiros.

Lampião, junto com Maria Bonita e os cangaceiros, posa cumprimentando 
o fotógrafo libanês Benjamin Abrahão em foto tirada pelo cangaceiro Juriti
Lampião, junto com Maria Bonita e os cangaceiros, posa cumprimentando o fotógrafo libanês Benjamin Abrahão em foto tirada pelo cangaceiro Juriti
Na edição do dia 30/12/1928, o jornal carioca “A Crítica” relata 
Lampião com o coronel João Gonçalves de Sá, líder político e 
proprietário de fazendas
Na edição do dia 30/12/1928, o jornal carioca “A Crítica” relata Lampião com o coronel João Gonçalves de Sá, líder político e proprietário de fazendas

Seguiram para Tucano, onde os moradores os receberam bem. Mas, para continuar a viagem, obrigaram um padre a ceder o carro com motorista, e assim o bando viajou até Ribeira de Pombal, perto da divisa com Sergipe. Novamente houve boa hospitalidade e Lampião pediu um fotógrafo para registrar a presença do bando. A foto, batida por Alcides Fraga, maestro da filarmônica, saiu no mês seguinte com destaque em jornais do Rio de Janeiro. Depois, na então cidade de Bom Conselho, atual Cícero Dantas, roubaram os fuzis dos quatro soldados da polícia local.

Desta vez de caminhão, se dirigiram à localidade de Sítio do Quinto e ali, por acaso, Lampião ficou amigo do Coronel João Gonçalves de Sá, líder político, proprietário de muitas fazendas na região nordeste da Bahia e que se tornaria um de seus maiores coiteiros. Esse encontro foi narrado na edição de 30 de dezembro de 1928 de “A Crítica”, do Rio de Janeiro. Na apresentação da matéria, o jornal informa que a quadrilha estava reduzida a apenas oito homens – além de Lampião, Corisco, Ponto Fino [irmão de Virgulino], Moderno, Esperança, Mergulhão, Pernambucano e Arvoredo – que “declaram, por onde passam, ser de paz sua missão no interior da Bahia. E que já não são mais as mesmas feras de antigamente”.

O bando descartou a cordialidade ainda no final daquele dezembro: em Curralinho, entrou em combate com a polícia e matou um sargento e dois soldados. Outros combates e mortes de policiais se repetiram nos meses seguintes, e a violência dos bandidos só voltaria a amainar após o cangaço ganhar a adesão de muitas mulheres, que escolheram o mesmo caminho da pioneira, Maria Bonita.

A primeira dama do cangaço

Na primavera de 1929, durante visita ao povoado Malhada da Caiçara, em Paulo Afonso, um amigo apresentou Virgulino à jovem Maria de Déa, que, separada do marido, estava morando com os pais num casebre de taipa. Foi amor à primeira vista de parte a parte. Algum tempo depois, Lampião voltou para buscá-la e a moça o acompanhou de bom grado para se tornar uma personagem histórica, Maria Bonita, a rainha do cangaço.

A maioria das mulheres que seguiram seu exemplo nasceu na região de Paulo Afonso, a mesma que forneceu o maior número de homens para o cangaço, totalizando 47 pessoas de ambos os sexos. 

As mulheres deixam os cangaceiros mais descontraídos na pausa das batalhas/ Foto: Benjamin Abrahão
As mulheres deixam os cangaceiros mais descontraídos na pausa das batalhas/ Foto: Benjamin Abrahão

Algumas delas foram Mariquita, prima de Maria Bonita; Durvalina, que, após sobreviver ao ataque final a Lampião, se escondeu em Belo Horizonte com o companheiro Moreno e mudou o nome pra Jovina; Lídia, morta a pauladas por Zé Baiano depois de trair o companheiro com outro cangaceiro; Inacinha, mulher de Gato, ambos índios Pankararé; Catarina, outra índia da mesma tribo.

Antes de partir para um confronto, os cangaceiros escondiam suas mulheres em locais seguros. Dadá era a única que fazia questão de participar das ações armadas do bando. Ela nasceu em Belém do São Francisco, Pernambuco, e ainda pequena mudou-se com a família para a região de Paulo Afonso. Quando tinha 13 anos de idade e morava na Fazenda Macucuré, Dadá foi raptada por Corisco, um dos guerreiros mais temidos de Lampião, pouco tempo depois da chegada do bando à Bahia.

Cabeças cortadas

As cabeças cortadas expostas em praça pública em Santana do Ipanema, logo após a chacina dos cangaceiros/ Foto: Autor desconhecido
As cabeças cortadas expostas em praça pública em Santana do Ipanema, logo após a chacina dos cangaceiros/ Foto: Autor desconhecido

Lampião foi o mais afetado pela presença de Maria Bonita. “Sua agressividade se diluía nos braços de Maria de Déa”, conta Pernambucano de Mello, historiador do cangaço. Em vez de continuar naquela vida itinerante, que já durava mais de dez anos, passou a usufruir de longos repousos ao lado dela, de preferência em Sergipe. Num desses períodos de relaxamento, em 28 de julho de 1938, “macacos” comandados pelo tenente José Bezerra os surpreenderam acoitados na Grota do Angico, em Poço Redondo, sertão sergipano. O casal e mais nove cangaceiros caíram mortos e todos foram degolados.

As cabeças de Lampião e Maria Bonita estiveram expostas no IML de Salvador e, em 1969, foram sepultadas; em 2002, exumadas e entregues a netas do casal; e, no ano passado, deixadas para análises na Faculdade de Medicina da USP. Agora, em setembro 2023, se estuda um plano para saírem em exposição pelo país em 2024 e, depois, seriam depositadas num museu do cangaço a ser construído em Sergipe.

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