Edição 04
Agosto
2024

João Jorge

Foto: Fundação Palmares

Entrevista

Nós faremos Palmares de novo

Serra da Barriga, Alagoas, onde tudo começou com Zumbi dos Palmares/ Foto: Fundação Palmares

Avisa lá: “Se Palmares não vive mais, faremos Palmares de novo!” Com essa frase, do poeta José Carlos Limeira, grito do movimento negro, o baiano João Jorge Rodrigues encerrou sua entrevista à VivaBahia.

Na presidência da maltratada Fundação Palmares, desde o primeiro dia do Governo Lula, o fundador do Olodum, que fez os tambores do Pelourinho ecoarem nos quatro cantos do mundo, agora luta como Zumbi na Serra da Barriga para devolver a dignidade e a importância da instituição que representa 102 milhões de afro-brasileiros e tem interface com 54 países africanos, 12 países do Caribe e com os afros-americanos dos Estados Unidos.

Ele falou de tudo: anunciou que pretende fazer um cerco de segurança em torno dos quilombos e dos terreiros de candomblé, disse que processos contra as pessoas que tentaram destruir a instituição estão em andamento e se mostrou confiante: “Aos 35 anos, Palmares está voltando a ter a força de um menino, de uma menina, de um erê. Palmares é militante, é feminista, é negro, é indígena e, acima de tudo, um diamante da cultura popular brasileira”.

VivaBahiaNa sua primeira visita à Fundação Palmares, você disse à imprensa que a situação era “devastadora”. Quais foram os maiores danos e perdas causados pelo governo Bolsonaro que a atual gestão já identificou?

João Jorge – A tentativa era de asfixiar a Fundação Palmares com baixo orçamento e funcionários desmotivados. O prédio onde funcionava, sem ar-condicionado na maioria das salas, banheiros danificados, o acervo pronto para ser destruído, principalmente o mais valioso, que são os seus livros.

Ou seja, a Fundação estava enfraquecida, sem recursos e sem condições para funcionar. O cenário era de abandono, mais do que isso, era tratada como nada. A Palmares é um espaço da cultura nacional, da cultura negra, então recuperar sua dignidade e zelar por ela, é uma tarefa difícil, mas incrível, e é o que nós estamos fazendo.

“A Palmares é um espaço da cultura nacional, vamos recuperar sua dignidade e zelar por ela”

Foto: Fundação Palmares

VBQuais os planos e metas para recuperar, por exemplo, o acervo perdido ou destruído?

João Jorge – O acervo não foi totalmente destruído por causa da força dos funcionários que resistiram e porque aconteceram várias ações populares, pessoas e grupos que entraram em campo para impedir a destruição completa da biblioteca e do patrimônio da Fundação. Haviam mudado o símbolo da Palmares, suas cores, que possuem toda uma simbologia.

Nós estamos envolvidos, tomando todas as medidas para fazer a Palmares voltar a ser aquilo que sempre foi. Já revogamos várias decisões injustas ou indevidas como, por exemplo, a retirada de 81 nomes de personalidades que estavam na rede da Fundação. Esses 81 nomes vão voltar e vamos acrescentar outros nomes, agora serão 350 personalidades.

VBO que vocês pretendem fazer para responsabilizar os culpados pelos danos à instituição. Quem são estas pessoas?  A Fundação vai exigir, legalmente, a reparação dos danos econômicos?

João Jorge – Há vários processos correndo contra o ex-presidente e a Palmares está atenta na defesa dos seus interesses. Nos casos em que nos sentirmos prejudicados, iremos recorrer, para que o ex-presidente e seus agentes administrativos possam ser responsabilizados pelos danos causados. A instituição não poderá ser penalizada pelos erros cometidos, visto que é um órgão público, e o comportamento de quem está à sua frente implica em responsabilidade administrativa.

Foto: Fundação Palmares

VB O ex-presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, chamou o movimento negro de “escória maldita”, disse que Zumbi era um “filho da puta que escravizava pretos” e criticou o Dia da Consciência Negra. Cabe algum processo?

João Jorge – Na realidade, nós não estamos trabalhando com a ideia de vingança contra alguém. Pelo contrário, deixamos essas frases soltas no ar, naquele período. Nossa retomada é positiva! Estamos positivando a Palmares para que ela seja perpetuada. Falamos do Quilombo dos Palmares na Serra da Barriga, de Zumbi dos Palmares e Dandara, dos heróis da Revolta dos Búzios, da Revolta do Malês… Então, se as ações judiciais concluírem que os fatos que estão sendo julgados ferem ou feriram a integridade e a moral da população negra, que a justiça seja aplicada.

“... se as ações judiciais concluírem que os fatos ferem a integridade e a moral da população negra, que a justiça seja aplicada”

Mas nossa prioridade não é olhar para trás, mais sim, olhar para o presente e o futuro, já que a Palmares ficou durante um longo período muito distante do povo brasileiro, do povo negro, das comunidades quilombolas, dos povos de terreiro e da comunidade fazedora de cultura e saberes. Não haverá nenhuma palavra nossa, aqui, contra o movimento negro, contra a cultura negra. Não vamos responsabilizar a população negra pelo escravismo, mas sim, o processo de libertação que foi o mais demorado do mundo ocidental.

VBQuais são as metas prioritárias da Fundação Palmares? Quais as ações afirmativas que já foram feitas na sua gestão?

João Jorge – A política da Palmares é de defender a população negra e promover ações de fomento e preservação da cultura identitária da população negra, sendo prioridade agora, nesse final do ano, realizar um grande evento comemorativo ao 20 de novembro, Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, na Serra da Barriga, recuperando e fortalecendo a memória do Quilombo dos Palmares, o maior da história do Brasil.

Vamos levar muitas autoridades para esse evento e, praticamente, transferir a sede do Governo para a Serra da Barriga, em Alagoas.

“Vamos levar autoridades no dia 20 de novembro e, praticamente, transferir a sede do Governo para a Serra da Barriga, em Alagoas”

Vamos entregar a nova Casa da Palmares no local, para funcionamento administrativo e cultural. São pequenas metas, coisas fáceis e possíveis de organizar para que todos vejam que a Palmares está de volta, o Ministério da Cultura está de volta, com Margareth Menezes, com o atual presidente da República.

VBDia 20 de novembro é feriado oficial em São Paulo, Rio de Janeiro, Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso. Por que não é nos demais estados e especialmente na Bahia?

João Jorge – Porque teria que ser feriado nacional. Há uma luta para que essa data seja reconhecida nacionalmente. Há um projeto de lei do senador Randolfe Rodrigues, que dispõe sobre a data dedicada à população negra em todo o país. Já são 255 cidades que já têm a data como festa comemorativa em seus calendários.  

Foto: Fundação Palmares
Foto: Fundação Palmares

VB A Bahia tem 29,90% da população quilombola de 1,3 milhão do país (Censo 2022). Possui os dois municípios com mais quilombolas: Senhor do Bonfim, com 15.999 moradores, e Salvador, com 15.897 quilombolas. A Fundação pretende desenvolver ações específicas para essas cidades?

João Jorge – A Palmares vai desenvolver ações para os quilombos do Brasil inteiro. Já tem o Programa Bolsa Permanência, as certificações quilombolas, tem a cartilha Proteção Territorial Quilombola e estamos desenvolvendo ações, por meio das emendas parlamentares, para o total apoio a essas comunidades. Já tratamos da preservação do Cais do Valongo, no Rio de Janeiro, importante zona urbana da Pequena África, da Pedra do Sal e comunidade negra do Rio.

VB E os quilombos da Bahia?

João Jorge – Vamos cuidar de todos os quilombos do país. Já fomos, por exemplo, ver, ouvir, conhecer o Quilombo do Kalunga, em Goiás, o primeiro reconhecido pela ONU no Brasil. Com relação aos quilombos da Bahia, Senhor do Bonfim e Salvador, evidentemente que, por ter essa grande população quilombola, terão uma atenção diferenciada, porque vão precisar de mais recursos, mais apoio e, ao mesmo tempo, a logística de educação, renda, proteção e segurança.

VB Por falar em segurança, a Bahia tem registrado diversos ataques aos seus terreiros de candomblé. O que tem a dizer sobre isso?

João Jorge – Principalmente depois do que aconteceu com Mãe Bernadete (NR: ialorixá, ativista, líder quilombola, assassinada dentro do seu terreiro, em Simões Filho, Bahia), a preocupação da Fundação Palmares hoje é buscar, junto com o ministro Flávio Dino, estabelecer um cinturão de segurança em volta de terreiros e quilombos para proteger as pessoas que estão ameaçadas na Bahia, no Ceará, em vários lugares. A questão da certificação de terras no Brasil é urgente. O governo passado lidou muito devagar com a questão da titulação das terras para descendentes de africanos, cujos antepassados trabalharam e fizeram o Brasil rico e próspero.

“...queremos criar um cinturão de segurança em volta de terreiros e quilombos para proteger as pessoas ameaçadas”

VBO Censo também mostrou que os territórios quilombolas delimitados abrigam 12,6% do total do Brasil. Apenas 4,3% dos quilombolas residem em territórios já titulados. Como a Fundação Palmares vai enfrentar o desafio da regularização e titulação de terras quilombolas no país?

João Jorge – A Palmares está em permanente articulação com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que é responsável pela titulação dessas terras. O dever da Palmares é trabalhar para acelerar a regularização dessas terras e certificá-las. Reconhecemos que é uma situação grave no Brasil, pois as questões quilombolas e indígenas envolvem a posse de suas terras. E isso significa herança, riqueza.

Foto: Fundação Palmares
Foto: Fundação Palmares

VBComo você analisa a atual projeção da Fundação Palmares no país? Quais serão os próximos passos para fortalecer e expandir o seu raio de atuação? 

João Jorge – Iremos criar fatores positivos todos os dias para a Palmares, e isso envolve restaurar nossa biblioteca, nova atuação nas redes sociais, realização do projeto “A rota dos africanizados escravizados” em parceria com a Unesco, parcerias com embaixadas, publicações e uma parceria com a Empresa Brasileira de Comunicação, para a criação da TV Palmares 2024; ou seja, coisas boas virão por aí, legais e modernas.

VBVocê é o criador do Bloco Afro Olodum, um dos expoentes da musicalidade afro-brasileira no carnaval do Brasil. Fale um pouco de sua trajetória à frente do Olodum e seus projetos sociais. Como essa experiência pode ser útil na sua gestão?

João Jorge – A experiência de conduzir um bloco afro como o Olodum foi um aprendizado de mais de 40 anos que eu trouxe para a Palmares. A tese principal é de ativismo, criatividade e força nas ações básicas, como memória, cultura e promoção. Dentro disso estão os quilombos, os blocos afros, os afoxés, estão o rap, o hip-hop, o grafite, o empreendedorismo negro, os artistas plásticos, música, cinema, museus etc. A ideia é que a Fundação esteja no centro disso tudo.

“A tese principal da Palmares é o ativismo, criatividade e força nas ações básicas, como memória, cultura e promoção”

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