Edição 03
Mar/Abr
2024

A vingança miraculosa

Ilustração: Paulo Setúbal

Essa história me aconteceu nos idos dos anos 1970, quando eu trabalhava na redação do heróico Jornal da Bahia, na Barroquinha, para onde eu me encaminhava todos os dias, tão cheio de esperança no futuro como quem vai à casa lotérica. Rabiscava minhas pensatas sobre os filmes em cartaz e fazia serviços diversos. O editor, um gozador zen, pegava no meu pé por causa do meu cabelo e das minhas roupas. Um dia, ele me chamou à sua mesa. “Ei, paraíba, vem cá.” Plantei-me diante dele com os polegares enfiados no cós da calça, e no rosto a expressão inescrutável de Clint Eastwood ou pelo menos era essa a minha intenção.

Ele mostrou um telegrama (era assim que os sumérios se comunicavam nos anos 1970) mandado por um vereador da vila de Curva da Mata. Ao que parece, acontecera um milagre na igreja local. O vereador pedia reportagem urgente. Não havia detalhes. “Você vai lá, são três horas de ônibus, tá aqui o da passagem”, disse o editor, abrindo a gaveta de cima e dedilhando algumas notas de cruzeiro (moeda das dinastias pré-egípcias de 1970). “Faz a cobertura, volta amanhã de manhã.” Tentei protestar; tinha compromisso para aquela noite. Ele varreu a objeção com um gesto. “O compromisso de um jornalista é com a verdade,” disse. “Semana passada, você disse que era com o furo de reportagem,” observei. “Quando não houver furo, a verdade serve,” rebateu ele. “Se for coisa boa, mande a matéria por telefone antes das 22 horas”.

Embolsei o dinheiro e saí dali abatidão. Tinha programado para aquela noite um engalfinhamento amoroso com Janaína* (*nome de fantasia para proteger reputações), morena sílfide, insinuante, com quem eu já trocara uns amassos promissores no jardim do Icba e nas escadinhas do Quintal do Raso da Catarina. Fazer o quê? Passei rápido em casa, joguei uma muda de roupa na mochila e um livro de Bernard Shaw para ler no caminho.

Cheguei em Curva da Mata ao entardecer, já compondo um introito para a segunda parte da matéria: “Curva da Mata é um vilarejo que não faz jus ao nome, porque sua rua principal é uma reta a perder de vista, e a mata mais próxima fica a quilômetros de distância, do outro lado do rio.” Da rodoviária, liguei para Anacleto, o tal vereador, disse a que vinha, marcamos dali a quinze minutos numa sorveteria. Almocei um acarajé enquanto caminhava, e logo estava sentado diante do legislador municipal, um camarada torado-no-grosso, com ombros de pugilista, camisa de pastor evangélico, óculos de bandido de filme nacional.

Ele também olhou minha aparência com cara de quem não está gostando, mas a gente se acostuma. Procurei ser prático e objetivo. Pedi-lhe um resumo, em três frases, do que estava acontecendo.

– O padre Clímaco está em estado de choque – disse ele. Fez uma pausa e prosseguiu: – Isso nunca aconteceu antes, Curva é uma cidade cristã. – Nova pausa, e conclusão: – A TV Aratu está sendo esperada agora à noite.

Previ que a noite ia ser longa, e com paciência e encorajamento fui montando mentalmente as peças do quebra-cabeça, enquanto tomava um refrigerante e ele chacoalhava um uísque, todo se sentindo sob holofotes. A culpa (explicou) era da tal Dinorá Dendê, mulher pública local que ao falecer na véspera pedira para ser enterrada no cemiterinho da igreja. O problema é que o padre Clímaco, em plena missa, lançara o repto de que uma pecaminosa daquele quilate não merecia repousar em terra santa, “por mais grossas que fossem suas coxas”, exclamou, num ato falho cheio de culpa encruada. Isso mexeu com os brios das colegas da pecadora, que às escondidas mobilizaram uma força-tarefa munida de pás e enxadas, invadiram o campo santo e ali plantaram o caixãozinho da finada. Isto ocorrera na noite anterior, na ausência do padre.

“Quando o pobre padre acordou hoje,” disse ele, “abriu a janela e quase teve um AVC. Ali, onde há pelo menos 20 sepulturas de pessoas das melhores famílias curvamatenses, via-se apenas a sepultura tosca e clandestina da jezebel.” Fez uma pausa triunfante para efeito. “E as outras?”, perguntei, dócil. “Pularam misteriosamente para o outro lado do rio. Recusaram-se à companhia de uma desclassificada! Bora lá que eu lhe mostro.”

Fomos e era isso mesmo. Na lateral da igreja estava o gramadinho bem cuidado onde, a certa altura ,via-se uma única cova cavada às pressas por gente que visivelmente o fez chorando, rindo e bebendo. E na margem oposta do rio, bem ali do lado, a encosta estava coberta de lápides que (fui lá, claro, sou devoto de São Tomé) pareciam estar ali há mais de meio século, pelas datas, pelo musgo, pelas fotos desbotadas.

“Quando a TV mostrar isso ao mundo, nossa rede hoteleira vai explodir,” exultava Anacleto. “Já tenho três contratos em mente.”

Separamo-nos e eu fui apurar os antecedentes da indigitada, na Pensão Sabor A Mi, numa ruazinha discreta. Ali, me abanquei numa mesa, pedi uma cuba-libre, fui cercado por messalinas populares cheias de amor pra dar, até mesmo a um hippie-à-paisana como eu. Papo vai, papo vem, fiquei sabendo das aprontações do Anacleto, persona non grata sob aquele teto e sobre aqueles lençóis, pelo modo brutal como desfrutava das pobrezinhas, pagava mal, e ainda as ameaçava com alíneas do código de posturas. Veio mais bebida. Vieram mais histórias. Anoiteceu. Curva da Mata ressonava, menos os que esperavam a chegada triunfal da equipe da TV Aratu (chequei isso com o edil, que estava em plena vigília cívica). Arregimentamo-nos, com a força do amor e o combustível do licor de jenipapo. Como na véspera, elas cataram pás e picaretas, e requisitaram de novo os préstimos de Sebastião Minha Jeba, um homem-dos-sete-instrumentos local.

À calada, à sorrelfa, seguimos rua afora, eu com uma garrafa embaixo de cada sovaco. Pulamos o murinho da igreja, e eles refizeram de trás para diante a profanação da véspera. Exumaram o ataúde modesto e artesanal da finada amiga. Sem fazer barulho mais que o inevitável, e carregando aquele sofrido troféu, cruzamos a ponte e subimos a encosta. E no meio dos mármores alheios, dos anjos de gesso, das pencas de sobrenomes, dos florões de metal, achamos um espaço largo o bastante para (“mãos à obra, raparigaaaal!…”) abrir um novo repouso e replantar, ali os restos de Dinorá Dendê, enquanto sua fiel amiga Rosa Parda subia num jazigo e fazia um discurso teatral, que começou com “Eles não se livrarão de nossa presença!…” e terminou surpreendentemente com “Nó pasarán!…”. Sebastião estava colocando as últimas pazadas de terra na tumba quando se produziu na treva da noite um clarão cegante, espécie de raio sem ribombo que nos derrubou tontos e desorientados na terra fofa. Quando o encandeamento passou, erguemo-nos, cambaleantes, sem entender o que se passara. Mas nossas lanternas de pilha nos revelaram o fato incrível, fantástico, extraordinário: aos nossos pés, estava a cova fresquinha de Dinorá Dendê, e em volta dela apenas a terra vermelha e o capim baixo da encosta, nada mais.

Um grito sufocado de algumas mulheres me fez olhar para a direção onde elas apontavam: e vimos, ao luar o cemiterinho da igreja, do outro lado do rio, recomposto em sua provável arrumação tradicional, com todos os seus mausoléus e seus arcanjos. Nossa reação foi rir, rir e rolar na terra. “Dinorá, sua cascuda,” bradou Sebastião, “vai ter poder assim no cabaré da Babilônia!”. Sentamos no chão, brindamos, bebemos mais, e Rosa Parda se aconchegou a mim, mordeu minha orelha e disse: “Agora, bora esperar a chegada da TV Aratu”.

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