Edição 03
Mar/Abr
2024

Roberto Mendes: voz e alma do Recôncavo

Ensinando aos camaradas

ê samba, ê ê samba ah...

O santamarense Roberto Mendes já foi professor de matemática antes de virar músico, compositor, instrumentista, arranjador e, acima de tudo, um profundo conhecedor das manifestações culturais da sua gente e de Santo Amaro, o seu mundo, o seu universo. “Nunca me perguntei por que eu gosto tanto de Santo Amaro. E como me faz muito bem gostar e ser apaixonado por minha terra, eu nem mexo com isso”, diz.

Roberto Mendes nunca pensou em morar em outra cidade: “tudo que aprendi foi em Santo Amaro e sua periferia. Eu vejo Santo Amaro como a República Independente do Subaé. Eu vejo assim. Às vezes, eu digo absurdos, digo que não sou baiano, quem é baiano é Santo Amaro, eu sou só santamarense. E digo sinceramente: ser santamarense pra mim, já é uma coisa que me consome o dia inteiro. Eu ainda não tive tempo de pensar em ser baiano, em ser brasileiro porque Santo Amaro me consome as 24 horas do dia.  Meus mestres todos são pessoas ligadas à minha cultura: Nininho, Frade, Tavinho. Meus mestres foram a minha vida”.

Foto mais foto da capa: José de Holanda
Foto mais foto da capa: José de Holanda

Compositor de grandes sucessos, gravados pelos conterrâneos Maria Bethânia e Caetano Veloso, como a canção que clama por “purificar o Subaé e mandar os malditos embora”, Roberto Mendes mostra, com suas pesquisas e os seus estudos, que é importante a preservação da grande riqueza contida nos cantos e na música popular do Recôncavo.

A música de um lugar – ensina Roberto – está ligada à formação do comportamento de um povo. Isto é: está no que se come e no que se fala. Com a necessidade de comer, se criou a comida. Com a necessidade de sanar a dor, a alma, vêm a música e a poesia. A música é uma coisa ligada à necessidade de viver. Comportamento traduzido em canção é isso: a música gerada pelo povo de um lugar. Eu costumo dizer que a modernidade é uma coisa complicada, ela entra pesado mesmo. E se não tiver cuidado com a tradição, se não tiver um certo zelo pela tradição, ela é capaz de sumir. Porque cultura é regra de comportamento. A arte é exceção. A arte imita a vida e a vida, sem dúvida, é a cultura.

E o samba nasceu na Bahia ou não?

Vem de longe a polêmica sobre o nascimento do samba. Nasceu na Bahia ou no Rio de Janeiro? Para Roberto Mendes, há uma diferença entre o samba e o samba antes do samba. Ele acha engraçada essa discussão e explica tintim por tintim a sua tese: “o samba não é baiano. O que é baiano é o samba antes do samba. É o canto violado, são as rebitas, a chula de cabaça, a soma dessas coisas todas. Eu já afirmei isso e vou continuar afirmando: o samba antes do samba saiu daqui e quando chegou no Rio se formou como samba.

É só estudar o que acontece no Recôncavo Baiano – continua –, basicamente em Santo Amaro, São Francisco do Conde, essa região. Santo Amaro, na década de 30, era o segundo maior município da Bahia, chegou a ter 13 distritos, que se emanciparam e viraram cidades. Quem caminhar por essas cidades vai ver que ainda existe uma coisa muito próxima do samba que hoje é nacional, mas vai ver que antes tinha uma coisa ali, que possivelmente Ciata, Amélia, Prisciliana, Veridiana e outras tias baianas levaram pra lá e, nessa pequena África, virou essa coisa bela que é o samba, essa soma de duas Bahias. O samba mesmo surge no século XX, e curioso: a primeira música tida como samba é um maxixe, Pelo Telefone, e quem gravou foi um santamarense, Manoel Pedro dos Santos, que atendia por Baiano.

Para Roberto Mendes, o samba antes do samba ainda existe, é uma realidade no recôncavo em forma de xaréu, de chulas, de rebitas. Nos cantos de louvor, nas trezenas de Santo Antônio, no caruru de Cosme e Damião. Lembra que depois da reza tem a parte profana, que começa com a chula e depois vira samba de roda. 

É tudo ligado – complementa – à fé e à festança. Aqui no Recôncavo, a festa me parece um orixá. É de comemoração, de alívio pra alma. Talvez seja isso que me prende aqui. A gente sempre recorre à festa pra ir ao encontro da felicidade.

Bethânia fala de Roberto

“Certamente um músico fora do comum, extraordinário, apegado e apaixonado por sua gente, sua terra, sua água tão limpa e única, e tão apodrecida hoje com a desculpa do progresso. Progresso miserável, matando seus rios, peixes, mariscos… Progresso de chumbo que corrói o solo de tantos canaviais. Ao inferno todos os perversos que iludiram e iludem a “cidade e o rio”, donos dos sons e sabores que aqui na música única de Roberto sente-se, respira-se e saboreia-se”.

Foto: TVE/Divulgação

Uma das músicas mais conhecidas de Roberto Mendes, em parceria com o poeta José Carlos Capinan, é Yáyá Massemba, gravada por Maria Bethânia. Trata de temas históricos, como a escravidão e o tráfego negreiro. Roberto fala sobre a música: “Semba é uma palavra em quimbundo, que significa o ungir em torno do umbigo, podemos dizer, a umbigada. Massemba é o plural de semba. É como se disséssemos sembas. Trata de uma teoria de como possivelmente a chula chegou até aqui. E termina, com um verso que não é nosso, mas que Capinan adaptou muito bem, que é ‘vou aprender a ler pra ensinar meus camaradas’. Na verdade, o verso

original, do pessoal do Iguape, os sudaneses que chegaram por aqui, era “vou aprender a ler pra dar lição a meus camaradas”. É de uma beleza enorme. Eu acho que essa música foi toda feita pra dizer isso, e Capinan foi brilhante na adaptação.”

Yayá Massemba

Que noite mais funda calunga

No porão de um navio negreiro

Que viagem mais longa candonga

Ouvindo o batuque das ondas

Compasso de um coração de pássaro

No fundo do cativeiro

É o semba do mundo calunga

Batendo samba em meu peito

Káwo-kabiesile-káwo

Okê-arô-okê

Quem me pariu foi o ventre de um navio

Quem me ouviu foi o vento no vazio

Do ventre escuro de um porão

Vou baixar no seu terreiro

Êpa raio, machado, trovão

Êpa justiça de guerreiro

Ê semba ê ê samba ah

O batuque das ondas

Nas noites mais longas

Me ensinou a cantar

Ê semba  ê ê samba ah

Dor é o lugar mais fundo

É o umbigo do mundo

É o fundo do mar

 

Ê semba ê ê samba ah

No balanço das ondas okê arô

Me ensinou a bater seu tambor

Ê semba ê ê samba ah

No escuro porão eu vi o clarão

Do giro do mundo

Que noite mais funda calunga (bis)

Ê semba ê ê samba ah

É céu que cobriu nas noites de frio

Minha solidão

Ê semba ê ê samba ah

É oceano sem fim, sem amor, sem irmão

Ê káwo quero ser seu tambor

Ê semba ê ê samba ah

Eu faço a lua brilhar o esplendor e clarão

Luar de Luanda em meu coração

Umbigo da cor, abrigo da dor,

A primeira umbigada é massemba Yayá

Yayá massemba é o samba que dá

Vou aprender a ler

Pra ensinar meus camaradas

Vou aprender a ler

Pra ensinar meus camaradas…

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Leia Também

O São João da Bahia ocorre nos seus 417 municípios. Em apenas um único dia, 2.600 shows. São 7 mil horas de forró diariamente, 1.700 viagens de ônibus e 300 mil carros nas rodovias. Gera centenas de milhares de empregos. E movimenta a economia em todo estado (...)
Livro de Helenita Monte de Hollanda e Biaggio Talento traz catálogo de rezas, rezadeiras e quebrantos do Nordeste do Brasil.
A mistura, aqui, foi geral. Primeiro, havia os tupinambás, que tinham tomado as terras dos índios que, antes deles, habitavam a região. Expulsaram os tupinaés para o sertão e ficaram aqui, na orla da atual Baía de Todos-os-Santos, entre o que é hoje Salvador, a velha Itaparica, águas e terras do Paraguaçu.