Edição 03
Mar/Abr
2024

Dinheiro, carinho e reza ninguém despreza

Dona Chiquinha Ferreira, 111 anos, em 2021, de São Gonçalo do Amarante, RN?Foto: Biaggio/ Helenita Hollanda

Letras da Bahia

Elieser Cesar

Livro de Helenita Monte de Hollanda e Biaggio Talento traz um catálogo de rezas, rezadeiras e quebrantos do Nordeste do Brasil.

No conto “Corpo Fechado”, do clássico “Sagarana”, João Guimarães Rosa conta a desgraça de um valentão que avisa a um mirrado capiau que logo mais vai pegar a noiva dele emprestada por uma noite e depois devolvê-la para o casamento. O noivo fica atônito. Como impedir o desplante, se não podia com o celerado?

A solução chega com um velho curandeiro, que leva o angustiado noivo para um quartinho e o cobre de rezas, fechando-lhe o corpo. O final é um duelo de faroeste. As balas do malfeitor assoviam, mas não conseguem atingir o alvo a poucos metros de distância. O outro tira da cintura uma faquinha, pouco maior do que um canivete, e mata o facínora para o espanto de todo o povoado.

Rezas como a do conto, simpatias, quebrantos, excelências e outras crendices populares do Nordeste brasileiro são o tema do livro “Com dois te botaram/com três eu te tiro – Um estudo sobre religiosidade popular, suas rezas, benditos e excelências”, da médica e pesquisadora da cultura popular Helenita Monte de Hollanda e do jornalista Biaggio Talento. A obra representa um breviário da oralidade sertaneja e das crenças oriundas do catolicismo popular do Brasil profundo, onde as rezas são um artifício corriqueiro para curar os males do corpo e da alma.

Bote seu olho na maré de vazante

Alguém com olho grosso chamou o papagaio de bonitinho e o louro ficou borocoxô? Chame a rezadeira. Com uma folha de arruda, ela vai benzer o bichinho que volta a soltar a língua numa imitação desenfreada. O caçador tem medo de cobra. Há rezas para espantar o ofídio. Aliás, no seu inventário de crenças, Helenita e Biaggio mostram que há rezas para tudo. Vamos, com fé, salmodiar algumas delas.

O estômago arde de azia. A reza é essa:

“Indo eu por uma carreirinha/ Encontrei uma portinha/ A Virgem Maria com seus livrinhos na mão/ Num lia, noutro escrevia/ Noutro talhava a azia”.

Mãe Celina Pereira do Nascimento, 64 anos, Xique-Xique, Bahia/ Foto: Biaggio Talento/ Helenita Hollanda

Olhado e quebranto podem ser esconjurados com essa poderosa oração que inspira o título do livro:

“Com dois deitaram/ Com três eu tiro,/ Com o poder de Deus/ E da Virgem Maria/ Tiro esse quebranto e/ Esse olhado./ O que é que tem fulana?/ Tem quebranto, tem olhado?/ Eu tiro com o poder/ De Deus e da Virgem Maria.”

A erisipela faz a perna doer, inchar e pesar como chumbo? Tem remédio:

“Eu vinha por um caminho,/ Encontrei Nossa Senhora,/ Perguntei à Virgem Maria/ – Como sararia? – Com reza / Vermelha é bicha fera que/ Dá no osso, dá na carne/ Dá na pele / Assim como tu é uma bicha fera/ Que dá no osso, dá na carne,/ Dá na pele, com os poderes/ De Deus, da Virgem Maria eu/Te corto o pescoço.”

O guloso se engasgou com uma espinha de peixe? Basta rezar:

“Senhor São Brás/ Disse a seu moço/ Que subisse/ Ou que descesse/A espinha do pescoço”.

Para espinhela caída, segue o antídoto atávico: 

“Seja em nome do Senhor/ Este seu mal curado/ Espinhela caída/ e ventre derrubado/ Eu te ergo, curo e saro / Fica-te, espinhela, em pé!”

Até para fazer a fé no jogo do bicho tem uma ladainha específica, que termina numa espécie de pacto fáustico:
“No inferno tem uma pedra, debaixo da pedra tem um milhar, quem vem trazer Cordér, Noizer, Satanaz e Lucifér”.

Depois, é apostar no milhar e sair para comemorar. Mas, para isso, é preciso não temer o Cão e uma fé inquebrantável, superior a de Jó.

O poder da oralidade

Pedro Santinho, 91 anos, Tucano, Bahia/ Foto: Biaggio Talento/Helenita Hollanda
Pedro Santinho, 91 anos, Tucano, Bahia/ Foto: Biaggio Talento/Helenita Hollanda

Médica de formação, psicanalista e pesquisadora da cultura popular brasileira, Helenita Monte de Hollanda passou a compilar, entre 2011 e 2012, um rico acervo de histórias, lendas, benzeduras, rezas, benditos e excelências, quando atuou no Programa Saúde da Família em cinco municípios baianos: Mucugê, na Chapada Diamantina; Xique-Xique, na região do Rio São Francisco; Tucano, no sertão; Maragogipe e São Félix, no Recôncavo baiano. Depois, a pesquisa se expandiu por Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí.“O poder da oralidade é imenso e explica como essas rezas chegaram até os nossos dias”, assinala Helenita. No livro do casal, a ciência e a crendice popular têm também um casamento harmônico, pois como já dizia William Shakespeare: “Há mais coisas entre o céu e a terra do que imagina a nossa vã filosofia”.

Biaggio Talento observa que “a magia, religião e ciência têm convivido ao longo da história e permanecem trilhando vias paralelas até os dias de hoje.”

O casal mantém o Canal Cultura Popular Brasileira, no You Tube, (www.youtube.com/c/CulturaPopularBrasileira) com grande parte de suas pesquisas e mais de 3,7 milhões de visualizações até junho de 2023. Helenita Monte de Hollanda é autora de outra pérola da cultura popular brasileira, o livro “Como diz o ditado” (Salvador: Edição Alba, 2014), que reúne 1.323 ditados populares, de A a Z, como este encharcado de álcool: : “Cavalo de cachaceiro conhece o caminho da bodega”.

Ela tocou fogo na jega

Para os que acreditam piamente nas rezas, os elementos da natureza também podem ser “controlados” pelas benzeduras ou encantamentos. Uma fórmula para se apagar incêndios foi disseminada, na década de 1940, na cidade paulista de São Luiz do Paraitinga: “Pega-se um tição do fogo de casa e assopra até surgir labareda, fazendo com que a chama entorte para o lado do incêndio na mata”. O rezador garantia que os dois fogos se encontravam e o de fora se extinguia. A explicação era de que “o fogo da casa é batizado, por isso acaba com o outro, que é pagão”.

Dona Venerana Ferreira de Souza, 65 anos, rezadeira, Mucugê, Bahia/ Foto: Biaggio Talento/ Helenita Hollanda
Dona Venerana Ferreira de Souza, 65 anos, rezadeira, Mucugê, Bahia/ Foto: Biaggio Talento/ Helenita Hollanda

O livro de Helenita e Biaggio tem três partes. A primeira procura explicar os antecedentes históricos dos fenômenos apresentados, a exemplo da associação com a magia primitiva. Na segunda parte, vêm as rezas para tudo: lombrigas, parto, queimadura, chuva, trovoada, reumatismo, dor de cabeça, mordida de cachorro, entorse e outras.

A terceira e última parte do livro cuida dos benditos e excelências, dos ritos para exultar moribundo (facilitar a passagem para o outro mundo, de almas atormentadas, supostamente por lembrar, na hora da morte, de faltas e crimes graves, como o de uma mulher que tocou fogo numa jega e só teve sossego quando foi “exorcizada” pela rezadeira).

Helenita Hollanda e Biaggio Talento
Helenita Hollanda e Biaggio Talento

Termina com rezas apocalípticas, mas deixamo-las para lá, pois o mundo já anda mesmo muito ruim e não convém piorar.  A prática das rezas populares é antiga. Regula por mais de 2 mil anos. Na Itália, uma das versões mais interessantes de benzedores foram os benandanti, movimento que remonta a tradições de camponeses que realizavam ritos para assegurar boas colheitas.

Tanto Helenita Monte de Hollanda quanto Biaggio Talento podem repetir Pablo Neruda, quando o poeta chileno confessa: “Hablo de cosas que existen. Dios me libre de inventar cosas cuando estoy contando!”.  Leitor desconfiado, não deixe o racionalismo reduzir as rezas à superstição secular do povo, pois, como dizia o Guimarães Rosa do começo desta resenha: “Dinheiro, carinho e reza, ninguém despreza.”

Elieser Cesar, jornalista e escritor

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