Edição 04
Agosto
2024

Glicéria Tupinambá

A jovem liderança batalha para trazer de volta ao Brasil os mantos, heranças dos ancestrais tupinambás/Foto: Paulo Lugon (Cimi)

Entrevista

A MENSAGEIRA DO MANTO SAGRADO

Foto: Acervo Célia Tupinambá

As baianas da Escola de Samba Grande Rio, terceira colocada no Carnaval 2024, encantaram os olhos com a fantasia “Açoiaba Manto Tupinambá”, que representou, em forma de denúncia, o roubo de peças fundamentais para a compreensão da história do Brasil. A fantasia foi criada pela artista Célia Tupinambá, responsável pela negociação internacional e retorno de mantos roubados do país por viajantes europeus, no período do descobrimento. Esses mantos eram utilizados pelos tupinambás desde tempos imemoriais em diversos rituais.

Glicéria Tupinambá, mais conhecida como Célia Tupinambá, neta do pajé, nasceu por mãos de parteira, em 1982, na aldeia Serra do Padeiro, na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. É artista e professora, ativista e líder indígena, uma das vozes das nações indígenas na ONU.  É mestranda em Antropologia Social pela UFRJ e Licenciatura Intercultural Indígena no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia.

Há anos, trabalha na reconstituição de mantos tupinambás e construiu um itinerário artístico e político que lança novos olhares para o contexto dos museus e da cultura indígena apropriada pela colonização do chamado Velho Mundo.

Foi professora no Colégio Estadual Indígena Tupinambá da Serra do Padeiro. Realizou o documentário Voz das Mulheres Indígenas (2015) e, desde então, realiza vídeos junto com jovens da aldeia. Fez, também, a exposição Kwá Yepé Turusú Yuriri Assojaba Tupinambá/Esta é a Grande Volta do Manto Tupinambá (2021), em Brasília. Em 2023, recebeu o Prêmio Pipa de Arte Contemporânea. Lider nata da resistência tupinambá, sobretudo em questões relacionadas à educação, à organização produtiva da aldeia, aos serviços sociais e aos direitos das mulheres.

Célia é dessas pessoas que trabalham continuamente para manter o céu e a terra atados às próprias fundações, o que requer grande energia e coragem porque, em geral, significa estar na contracorrente dos mandatários do mundo.

Conheça um pouco mais sobre Glicéria Tupinambá, nessa entrevista aos jornalistas Vander Prata, Césio Oliveira e Andreyver Lima.

VivaBahiaQuem é Glicéria Tupinambá? Artista plástica, ativista feminista, uma voz brasileira na ONU, qual é o resumo da sua história?

Célia – Sou Glicéria Jesus da Silva, conhecida como Glicéria Tupinambá ou Célia Tupinambá. Somos 10 irmãos. A gente pertence a esse território. O que me faz ser a Célia Tupinambá, tá nesse lugar da memória. E no que os mais velhos contavam para mim, a importância do meu nome. Meu avô pajé escolheu, por conta da prima que foi levada para um aldeamento de Nossa Senhora da Escada em Olivença. Ela estava grávida e teve o bebê. Aí, ela fugiu do aldeamento e, quando retornava, entre um aceiro da mata e uma roça de milho, a onça comeu ela e a criança, só encontraram vestígios.

E, aí, meu avô pediu para minha mãe, até no seu leito de morte, que tivesse uma filha, uma menina e desse o nome de Glicéria, em memória. Falou para ela botar todos os meus irmãos na escola para estudar porque, daquele dia em diante, não teria ele para proteger a gente. Tinha que aprender a matemática, a ler, a escrever, para quando chegar algum papel, a gente saber que papel é esse, né?

VivaBahiaEm que momento você começa a se destacar como liderança, nesses tempos tão difíceis?

Célia – Eu acho que começa em 2004, a gente estava sofrendo bastante com ataque ambiental, tava tendo muito desmatamento e, principalmente, em cima das nascentes do rio da Serra, que tinha um jequitibá centenário, precisava de várias pessoas para poder abraçar. E aí, o fazendeiro foi lá, e tirou essa árvore. Assim que tirou, a nascente secou.

Como o desmatamento tinha se alastrado, a gente não sabia o que fazer. Mas conseguimos mapear tudo isso com um grupo de jovens, reunindo várias imagens, fotografias, fizemos um monte de material e entramos com processo na Justiça em vários lugares.

“Resistir é pisar na terra, fazer a retomada, tirar madeireiros e caçadores que entram com cachorro para fazer caça esportiva”

Só que aí, a justiça negou para a gente.

A nossa primeira audiência foi com o juiz Dr. Pedro Holiday, quem é da região conhece. Ele convidou a gente para esse julgamento, esse júri. Mas na hora, ouvi ele falar assim: ‘Vocês são indígenas?’ E eu pensei: “Êpa, aqui já tá diferente”. Aí ele virou e disse: “Vocês sabem que vocês são indígenas, são tupinambás, e esse júri aqui não é favorável a indígena não. Se vocês quiserem algum direito, vocês recorram a Brasília”.

VBComo a aldeia reagiu?

Célia – Eu ainda estava em choque, sem entender tudo aquilo. Os mais velhos disseram, ‘a gente é velho, não aguenta mais, mas vocês são jovens, resistam. E resistir pra gente é pisar na terra, fazer a retomada, tirar os madeireiros de dentro, tirar os caçadores que entravam com cachorro para fazer caça esportiva, era um desassossego no território. Nós dissemos: vamos retomar tudo isso, entender esse processo. Como é que vamos esperar pela demarcação? Como o governo diz que será, não vai sair nunca.

VBOs tupinambás foi um dos últimos povos a conseguir a demarcação, e foram os mais perseguidos durante a colonização. Tem o episódio do Corurupe, conhecido como Maré de Sangue, com milhares de índios mortos a paulada, enquanto nadavam.

Célia – A gente tem várias histórias de memórias contadas pelos mais velhos e como eles participaram de várias guerras. Uma das guerras é para ter o território demarcado, o que nunca nos foi dado. Não deram à gente, como não deram para todas as outras etnias que foram botadas para lutar umas contra as outras em torno de ter um papel assinado, reconhecendo esse território criado.

Nesse período, essa região tem a febre do cacau, tem a ampliação da cidade e é estabelecida essa perseguição, que é matar os indígenas. Acham que eles não pertencem a uma etnia. E aí, tira essa questão de ser povo e passa a ser caboclos, começa essa nomenclatura para dizer que você é menos ainda. Então, os tupinambás, que viviam na cabeceira do rio Una, não ficam no litoral.

Séc. 16, gravura de Theodor de Bry, Museu Nacional UFRJ. Tupinambás usando mantos sagrados em ritual / Foto: Reprodução
Séc. 16, gravura de Theodor de Bry, Museu Nacional UFRJ. Tupinambás usando mantos sagrados em ritual / Foto: Reprodução

A gente tem essa referência, nunca foi de outras regiões, a gente sabe quais são os pontos dos clãs de cada família, cada história que cada um tem.

“A lei de extermínio aos tupinambás vem em cima de nós muito fortemente, e a gente precisa recuar para se manter vivo”

No ano 2000, quando se falava do Manto Tupinambá, éramos considerados extintos. Diante de todas as guerras enfrentadas, a perseguição… a morte dos tupinambás foi decidida lá atrás, por uma lei estabelecida pelo rei de Portugal, baseado numa bula papal. A lei de extermínio aos tupinambás. A lei da guerra justa vem em cima de nós muito fortemente, e a gente precisa recuar para se manter vivo.

O pessoal sempre tentou roubar nossa terra. Uma briga cerrada na questão jurídica, juízes de interesses alheios mandando no nosso território.

VBEssa lei que você fala, do extermínio dos tupinambás, ela é de quando?

Célia – Ela tá aqui desde o século 16.

VBEla existe até hoje? Da mesma forma? É isso?

Célia – Ela ainda existe. Existe. Uma coisa interessante: os indígenas lá do Canadá fizeram uma mobilização porque, lá no passado, o papa estabeleceu duas bulas papais, garantindo aos reis a lei do extermínio aos povos. Só em 2023, o papa Francisco foi lá visitar esses indígenas e revogou as duas bulas. Elas estavam sendo usadas por uma juíza para a não demarcação do território canadense.

Essa lei nunca foi derrubada, até hoje, no Brasil. Ninguém entrou com o processo para cancelar esta lei.

“Usamos nosso corpo e vários enfrentamentos pra frear essa guerra, para que hoje a Amazônia existisse”

Em 1500, os Tupinambás habitavam Pindorama, 
quando os europeus dominaram seu território e levaram 
os Mantos Sagrados/Foto: Niel Erik Jehrbo – Museu Nacional Dinamarca
Em 1500, os Tupinambás habitavam Pindorama, quando os europeus dominaram seu território e levaram os Mantos Sagrados/Foto: Niel Erik Jehrbo – Museu Nacional Dinamarca

VBVamos falar do atual governo, que tem indígena ministra. A Funai vai resolver? Como é que se explica tudo isso continuar existindo?

Célia – Então, não foi nós que criou a política. Tem um jogo de política, que eu não vou dizer que eu domino ou não domino, mas a gente dormiu e acordou, temos um ministério. Mas aí, você dá algo e você tira outro. Você tira todas as autonomias, você não dá condição, você não implementa, você não dá recurso suficiente, uma vez que têm vários territórios.

Têm 120 povos indígenas de outras etnias isolados, que não sabem o que é presidente, o que é ministra, o que é ministra indígena. Isso é na região amazônica. Eu até falo isso muito nas minhas palestras. O quanto que nós usamos nosso corpo, usamos vários enfrentamentos pra frear essa guerra, para que hoje a Amazônia existisse, para que esses povos estivessem existindo.

E eles ainda estão lá, isolados, sofrendo um grande ataque com mineração, com caçada, com a exploração da madeira, com o PCC. Hoje, ainda tem toda essa raiva sobre a nossa existência, nosso existir sobre a terra.

Quando a gente é indígena, todo mundo diz:  lugar de índio é na Amazônia. Aí, quando chega lá na Amazônia, o pessoal diz: lugar de índio é na região tal da América Latina, lá perto do México, não sei onde… Quando chega lá, o pessoal diz que lugar dos indígenas é lá mais para o norte e por aí vai. Sempre mais longe.

Eu queria saber onde é que é o nosso lugar, gente! Vamos pulando, pulando, não tem nem mais como a gente habitar o território. E aí, acaba a gente jogado no espaço. Como a gente não tem uma nave pra ir pro espaço, a gente tem que ficar no chão, brigando.  Será que o manto sagrado não é essa nave? Quer dizer, essa prova da nossa existência na História?

VBO manto sagrado, o que significa? Fale um pouco desse resgate do primeiro manto. O que é que você espera que esse ministério pode fazer para a recuperação dos mantos espalhados pelo mundo?

Célia – Não é uma coisa de político. Na verdade, é uma aliança que foi feita lá atrás, pelos meus ancestrais. A gente tem uma aliança francesa, tem uma aliança portuguesa. Esses mantos que estão na Europa são nossos embaixadores.

VBComo assim?

Célia – Porque o objeto, nesse caso, não é um objeto, ele é um embaixador. O manto é um artefato efêmero.

VBMais que um objeto, é isso?

Célia – Uma arte muito delicada, que tem mais de 400 anos. Ele é um velhinho, ele parece novo, mas ele é um velhinho. E ele é um velhinho que tem uma ancestralidade. Então ele sai desse lugar do objeto e vira esse ancestral, ele é um parente. Ele é um embaixador do povo tupinambá. Ele foi acionado pelos encantados. E aí eu aciono ele no lugar da diplomacia.

Célia Tupinambá e o manto encontrado na Dinamarca, que agora volta às origens, terras brasileiras/ Foto: Acervo Célia Tupinambá
Célia Tupinambá e o manto encontrado na Dinamarca, que agora volta às origens, terras brasileiras/ Foto: Acervo Célia Tupinambá

VBExplique um pouco melhor o que é essa voz dos encantados e essa direção que você toma em defesa do manto.

Célia – Os encantados mandou fazer a caça, eu fiz a caça. Mandou fazer a escuta, eu fiz a escuta. Porque é assim na nossa essência, desde a criação, a cosmovisão do tupinambá, de existir na Terra. Então, o que as pessoas consideram Deus, para a gente era o Velho, o Velho da Criação.

E o Velho esculpe a primeira humanidade a partir das cinco irmãs que são as árvores. As árvores têm cores diferentes, por isso que a humanidade tem cores diferentes. Olhe para as linhas dos dedos, as digitais, isso te leva a entender a sua origem, porque essas linhas são das árvores.

A vida começa aí.  Só que, como o sopro da vida é eterno e veio do Velho, ele agencia os espíritos, como o manto, e esses espíritos eram alimentados pelos rituais, e eles falam.

VBO manto falou com você?

Célia – No meu primeiro encontro com o manto, em 2018, o manto falou comigo e eu fiquei assim… Então, toda essa história que foi contada pra gente não é bem uma história real. Os encantados vêm conduzindo a gente a esse lugar do mundo sensível. Então, nem todo mundo vai poder acessar o que eu acesso, entender o que eu entendo, né? Porque quando o manto me acessa, ele me acessa nesse lugar, de uma linhagem de parente direto, de sangue direto. Então, nem todo mundo vai entender o que eu tô falando.

VBE por que você decidiu ser artista plástica e fazer o seu manto?

Célia – Seguindo os encantados. É eles que mandam. Eu só obedeci, sou boa menina. Eu sou artista quando eu faço um filme, eu tiro uma foto. Na feitura do manto, ele e eu concebemos o manto, mas nesse lugar coletivo, que é onde estão os pássaros, os sonhos, as vozes dos encantados, na cabeça da gente. Elas emanam do objeto, e eu só entendo, traduzo e ele me conduz a fazer. Eu não assino o manto. O manto é coletivo. O manto vem desse lugar do cosmo. Eu uso a cosmotécnica e o manto vem da cosmoagonia. Como é que era usado esse manto lá, quando ele foi achado, roubado, levado daqui? O manto fazia parte de que tipo de cerimônia, eram homens, eram as mulheres, era o quê?

“Nenhum indígena assinou nenhum papel vendendo o Brasil. E nem trocou por espelho. Porque eu já ouvi isso na escola”

VBOs indígenas são vítimas desse caos?

Célia – Nenhum indígena assinou nenhum papel vendendo o Brasil. E nem trocou por espelho. Porque eu já ouvi isso na escola. Falei: professor, que história foi essa? Porque eu já li todos os documentos, eu vi guerra, eu vi morte, eu vi várias resistências, mas dizer que os indígenas trocaram território por espelho? A venda territorial aí não teve, foi guerra mesmo, foi luta mesmo, ocupação de espaço, como foi feito com outros povos.

VB Voltando à questão dos mantos, quantos vocês já localizaram? Como vocês estão conseguindo trazer os mantos de volta?

Célia – A gente está trabalhando junto, desde sempre, com o Museu Nacional. O museu nos convidou a fazer uma carta para pedir o manto de volta. A princípio, eu tinha negado. Daí, consultei os encantados e eles autorizaram a fazer essa carta. A gente vai e faz o que os encantados mandam. Dona Nivalda viu o manto em 2000, e a gente fez essa carta em 2002.

VBQuem é dona Nivalda, como foi que ela reconheceu o manto?

Célia – Dona Nivalda é mãe da cacique Valdelice, do Povo Tupinambá de Olivença. Foi convidada para ver uma exposição, onde havia um manto identificado como tupinambá, pertencente à Dinamarca. Ele está na coleção real e é um tesouro da Dinamarca.

O manto é identificado como tupinambá, mas pertence à Dinamarca. Não é uma coisa simples.  Quem é o responsável de lidar com essas demandas é o museu. Então, a gente fez uma carta, mandamos, e aí o embaixador brasileiro na Dinamarca encaminhou o processo político da doação. Eles têm que doar pra gente. Quando foi agora, em 2023, a resposta da carta foi positiva. Vão fazer a doação para o Museu Nacional. E aí, toda a sociedade será informada sobre a vida do manto.

A liderança tupinambá representa o Brasil na Bienal de Veneza (abril 2024), vestindo o manto sagrado que elaborou com a ajuda dos encantados/ Foto: Divulgação Embaixada do Brasil

VBE os outros mantos vocês vão continuar na batalha para que eles também voltem?

Célia – Na verdade, o manto falou para mim que é necessário um encontro de todos os mantos. Não necessariamente, eles precisam ficar no país, mas eles precisam se reunir. Porque eles são embaixadores e estão em países diferentes. Então, há uma necessidade desse encontro de todos os mantos.

Pois isso representa um Conselho de todos esses mantos, vindos de toda essa Europa.

“Eu peço pela humanidade, para que o mundo volte pro seu eixo e a gente entenda outras formas de mundos possíveis”

VBVocê acha que vai conseguir reunir esse Conselho?

Célia – Eu faço tudo de acordo com o manto. Ele estabelece sobre a demanda do que é o possível, né? Mas ele falou que se eu conseguir trazer os mantos juntos, eu tenho direito a um desejo. E eu falei, se eu tiver direito a esse desejo, eu peço pela humanidade, para que o mundo volte pro seu eixo e pra que esse mundo exista pra outros povos, pra outra nação, pra outros depois de mim.

E que o errado seja o errado e o certo seja o certo. Eu desejo a mesma coisa que os meus desejaram, a continuidade dessa humanidade. Que essa humanidade aprenda e volte a existir. A não cair nesse lugar, nesse mundo que tem um fim que já está, basicamente, na fase final, na fase terminal. E para meu mundo, a guerra ainda não venceu, o outro ainda não venceu. Então, para mim, a gente vai ter que entender outras formas de mundos possíveis.

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