Edição 04
Agosto
2024

Um revolucionário que jamais perdeu a ternura

Capa do livro de Emiliano José

Elieser Cesar

De um lado, ele tem a têmpera revolucionária de Che Guevera. De outro, a mansidão pastoral do arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns. Como Guevara, soube combater a opressão sem perder a ternura jamais. A exemplo de Dom Paulo, lutou contra as injustiças sociais com um coração numeroso e o amor ao próximo de um socialista cristão. Não é à toa que, volta e meia, era confundido com um padre. Não assentou batina, mas chegou a ser coroinha. Esse é o economista José Carlos Zanetti, um paranaense que veio para a Bahia e cuja vida se confunde com a estrutura da Ação Popular (AP) – braço da luta armada contra a ditadura militar (1964-1985) – no estado e a Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE) em Salvador.

Emiliano José, escritor e jornalista Ilustração: Miguel Cotrim

Zanetti morreu de câncer no cérebro, em 1 de março de 2021, antes de completar 75 anos de idade. Deixou um legado de amizade, solidariedade e doação à causa da revolução nos anos mais sombrios da ditadura militar. Sua atuação política é contada no novo livro do escritor e jornalista Emiliano José, de quem foi amigo e com quem atuou pela AP na Bahia, Zanetti: O Guardião do Óleo da Lamparina (Curitiba: Kotter Editorial, 2024). Com uma série de livros sobre personalidades progressistas, militantes e guerrilheiros, Emiliano é hoje o cronista da esquerda brasileira. Seu livro mais conhecido é Lamarca, O Capitão da Guerrilha, escrito em parceria com o jornalista Oldack Miranda.

A longa trajetória de Zanetti na Bahia irá também se imbricar, como a mão na luva, com as atividades da Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE), fundada em 13 de junho de 1973, na fase mais cruel da ditadura comandada, com mão de ferro, pelo general-presidente Emílio Garrastazu Médici. A CESE nasceu tendo o compromisso com a luta do povo brasileiro pela cidadania e o desejo de construir uma organização ecumênica de serviços, como observa Emiliano José. “O foco eram os movimentos sociais e as organizações populares de diversos matizes, expressas nas inúmeras formas de associativismo comunitários, associações e cooperativas, além de grupos de bases, igrejas, organizações ecumênicas na fé, movimentos sociais de caráter local, regional e nacional. Tal foco permanece’’, escreve Emiliano José.

Paixão pelo ser humano

Zanetti ingressa na CESE em 1979, ano da Anistia. Ali, com um pequeno interregno, passará a vida toda. “A Cese, após a prisão, foi a vida dele’’, anota Emiliano José. Para o escritor e jornalista, “contrariando amorosamente a Cese, o centro da vida de Zanetti foi a ternura, uma ternura expressa até na facilidade do revolucionário amoroso de se apaixonar, inclusive, por companheiras de luta. Che Guevara tem uma frase célebre: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás’’. Com o fraterno Zanetti, não tinha essa de endurecer. “Ao longo da vida, nunca o vi proclamar a necessidade de endurecer. Pela ternura, ele fazia valer as convicções alimentadas por sua alma de lutador’’, diz Emiliano.

Difícil e até paradoxal, pois, imaginar Zanetti disparando um fuzil para matar o inimigo na guerrilha que nunca chegou a combater. Porém, que ninguém se engane.  Seu ódio contra a injustiça, seu amor à liberdade e seu anseio por construir uma sociedade justa e fraterna poderiam levá-lo, sim, a estes extremos. Afinal, sua paixão pelo ser humano livre das correntes da opressão era a razão de sua militância político-revolucionária, e ninguém vai para a guerra para distribuir flores. Zanetti tinha um gosto enorme pela vida. Em Curitiba, praticava alpinismo no Pico do Marumbi. No Carnaval de Salvador, não dispensava a participação na irreverente Mudança do Garcia, embalada por charangas e protestos sociais. Tinha muito prazer em andar de bicicleta.

Zanetti, coração amoroso, alma guerreira/Foto: João Urban
Zanetti, coração amoroso, alma guerreira/Foto: João Urban
Zanetti e Teresa Urban, 1966, ternura de um tempo/Foto: João Urban

Deslocado pela Ação Popular de Curitiba para São Paulo, onde atuou junto ao sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, Zanetti chega à Bahia em 1970, junto com Emiliano José. O primeiro com o nome frio de Tião. O segundo com o codinome de Edmundo. A missão de ambos era distribuir materiais e estabelecer comunicação com os membros do foco guerrilheiro que a AP pretendia implantar na região do Pajéu nas proximidades de Irecê. Começava, ali, uma amizade para a vida toda. Zanetti, um militante mais quixotesco, Emiliano, embora igualmente disciplina derivando para o ceticismo, como o Sancho Pança a chamar para a razão o crédulo Cavaleiro da Triste Figura.

Que Brasil é esse?

Emiliano apresenta sua obra/Foto: Miguel Cotrim

A guerrilha nunca será deflagrada, por falta de condições objetivas. “Por quê? Ainda não há respostas’’, afirma o autor do livro sobre Zanetti. Em seguida, arrisca uma explicação: “Conjuntura extremamente repressiva: governo Médici prendendo, torturando e matando a torto e a direito. Em 1970, inicia-se a ofensiva contra a AP no Estado. Entre o segundo semestre daquele ano e o maio do ano seguinte, cai meio mundo, inclusive todo o comando regional. De roldão, são presos os dois guerrilheiros, surpreendidos ainda na cidade. Edmundo, em novembro de 1970. Tião, em maio de 1971’’.

De Salvador, Zanetti vai para Feira de Santana, onde exerce destacada atuação no Movimento de Organização Comunitária (MOC), entidade não-governamental de fortalecimento do exercício da cidadania, organização e desenvolvimento de comunidades e conquista de direitos políticos e sociais. Não era fácil a convivência dentro da AP. Quando não era o perigo da repressão, eram as incansáveis lutas internas, com as ameaças de rupturas e defecções. Uma das mais prosaicas era para definir se o Brasil dos anos 70 era um país capitalista ou agrário e semifeudal. A definição ajudaria a escolher melhor as estratégias da guerrilha. AP da linha maoísta.

Guardião da chama dos sonhos

Em 4 de setembro de 1969, o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e a Aliança Libertadora Nacional (ALN) executaram o espetacular sequestro do embaixador dos Estados Unidos: Charles Burke Elbrick, depois libertado em troca de presos políticos. É a desculpa para o endurecimento da repressão. Carlos Marighella prevê uma ofensiva brutal contra a esquerda. Não deu outra, ele próprio é assassinado dois meses depois em São Paulo. Num efeito dominó, militantes de esquerda e da luta armada vão caindo, presos ou mortos, em todo o Brasil.

Emiliano José é preso e torturado em 1970. José Carlos Zanetti cai em 1971. Ele é torturado barbaramente (choques elétricos, pau de arara, socos e pontapés) sob o comando do sádico Doutor Cláudio, cognome de Solimar Souza Carneiro. Um especialista na AP, que ele perseguia com a mesma obsessão do inspetor Javert no encalço de Jean Valjean, do romance Os Miseráveis, do francês Vitor Hugo.

Depois das torturas, Zanetti é trancafiado na famigerada Galeria F do Forte do Barbalho, em Salvador, onde reencontra Emiliano José e convive com outros presos políticos, como Paulo Pontes, Theodomiro Romeiro dos Santos, José Sérgio Gabrielli, Dirceu Régis, Renato Godinho e outros.  Em julho de 1972, cercado pelo carinho dos companheiros de cela, Zanetti se casa com a militante Cleusa, Ione Borges, na Penitenciária Lemos Brito em Salvador.

Com coragem e amor, Zanetti soube guardar o óleo da lamparina – referido no subtítulo do livro de Emiliano José – condição para manter acesa a chama dos sonhos, segundo um pensamento ancestral resgatado pelo teólogo e escritor Leonardo Boff. Guardemos pois o óleo da lamparina. Esse combustível dos sonhos vai ajudar a iluminar o exemplo de Zanetti.

Elieser Cesar, jornalista e escritor

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