Edição 03
Mar/Abr
2024

O povo jamais esquece as suas heroínas

Maria Quitéria se destaca no desfile. O povo sabe quem são seus heróis / Foto: Tatiana Azeviche

MARIA QUITÉRIA

Disciplinada, corajosa, capaz e consciente

Nascida em 1792 numa localidade que hoje é parte de Feira de Santana, Maria Quitéria de Jesus foi a primeira soldado mulher do Exército brasileiro. Aos 30 anos, cansada dos atritos em casa com a madrasta, Quitéria toma resolução drástica ao saber das notícias trazidas por tropeiros. Depois do ataque português a Cachoeira, em 25 de junho de 1822, que deu início à guerra, emissários estavam à procura de voluntários.

Numa época em que os horizontes femininos não iam além de “cozinhar, costurar e parir”, como escreveu Sonia Coutinho, autora do livro Guerreira Maria – Presença de Maria Quitéria, ela se disfarçou de homem – cortou o cabelo, amarrou os seios, vestiu a roupa do cunhado e adotou o nome dele, José Cordeiro de Medeiros. Despediu-se do namorado e rumou para Cachoeira.

Como soldado Medeiros, apresentou-se num regimento de artilharia – somente homens eram admitidos nas Forças Armadas – e mostrou que sabia atirar. Passou, depois, para a infantaria e consta que integrou o Pelotão dos Periquitos. De acordo com o historiador Luís Henrique Dias Tavares, o batalhão da farda verde “respondia pela defesa de Itapuã, supondo-se (não há prova) que nele se encontrava Maria Quitéria”.

Mulher singular e decidida, algum tempo depois revelou sua identidade. No entanto, o major Antônio José da Silva Castro, avô do poeta Castro Alves, fez questão que ela permanecesse na tropa, pois demonstrara facilidade no manejo de armas. “Foi um soldado disciplinado, corajoso, capaz, consciente”, escreveu Jorge Amado.

Seu destemor nos combates chegou ao conhecimento do imperador. Vencida a guerra, a heroína foi chamada para o Rio de Janeiro e, em cerimônia no Palácio Imperial, foi condecorada por D. Pedro I, em 20 de agosto de 1823, com a insígnia dos Cavalheiros da Ordem do Cruzeiro do Sul.

Contudo, no final da vida, cega e na extrema pobreza, Quitéria morreu esquecida, aos 61 anos. Não se sabe onde foi sepultada.

JOANA ANGÉLICA

A mártir virou heroína

Soror Joana Angélica perdeu a vida e entrou para história / Foto: Tatiana Azeviche
Soror Joana Angélica perdeu a vida e entrou para história / Foto: Tatiana Azeviche

No amanhecer do dia 19 de fevereiro de 1822, tropas a mando do brigadeiro Madeira de Melo, com a missão de prender soldados e oficiais amotinados e apreender armas e munições, iniciam ataques a quartéis em Salvador. O primeiro alvo, o Forte de São Pedro, resiste.

Um dos locais invadidos, vizinho ao quartel, é o Convento da Lapa. Aqui, porém, encontram uma resistência tenaz, não de gente disparando tiros, mas das palavras e gestos determinados da superiora desse claustro de mulheres.

Entre 11 e 12 horas do dia 20, depois de arrombar o portão lateral do convento, os invasores são barrados pela abadessa Joana Angélica de Jesus, de 60 anos, que se coloca de pé na porta de entrada, impedindo a passagem. Sem piedade, a matam a golpes de baioneta, que também deixam ferido o pároco da Lapa, o idoso padre Daniel da Silva Lisboa.

“Não a moveu o patriotismo e, sim, apenas, a defesa da clausura do convento”, observou o escritor Jorge Amado. Para o historiador Manoel Passos, “assassinada assim tão covardemente, sóror Joana Angélica foi mártir” de uma guerra que se tornaria aberta quatro meses depois.

MARIA FELIPA

Surra de cansanção, ora pois, pois!

Duas façanhas, ambas acontecidas à beira-mar e atribuídas à liderança de Maria Felipa, no futuro serão lembradas e comentadas com orgulho pelos itaparicanos. E vão motivar festas na Bahia.

De seu mirante estratégico, guerreiras nativas não desgrudavam os olhos dos navios portugueses.  Descem todas até a praia, dançando na areia de maneira insinuante, chamam a atenção dos homens que, como elas, são vigias a postos nas embarcações inimigas mais próximas. Marujos e soldados não resistem à sedução e rumam para a praia, deixando os navios desprotegidos.

Foto: Tatiana Azeviche
Foto: Tatiana Azeviche

Quando se aproximam do grupo de mulheres, elas retiram, de baixo das saias rodadas, molhos de galhos de uma potente planta com efeitos urticantes que seguram em posição de ataque, e partem como feras pra cima dos homens. Atônitos e indefesos, gritam de dor com a vigorosa surra que levam e caem coçando-se feito doidos.

O caule e as folhas do cansanção, golpeados sobre o corpo, irritam e queimam a pele, provocando inflamação, intensa dor e coceiras.

Enquanto isso, outras mulheres e alguns homens executam a segunda etapa do plano de Maria Felipa: de dentro de canoas, lançam tochas incendiárias nos navios abandonados pelos marotos otários.

As descrições protagonizadas por Maria Felipa são controversas.

Jaime Nascimento, historiador, integrante do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, afirma convicto: “Ela [Maria Felipa] não existiu. É uma personagem de ficção criada pelo escritor itaparicano Ubaldo Osório, avô de João Ubaldo Ribeiro, que foi apropriada por segmentos do movimento negro e transformada em ‘heroína da Independência’ de forma bizarra e desonesta com a história.”

Porém, nem todos acusam a falta de registros sobre Maria Felipa:

Fato ou lenda?

“Hoje, já se contabiliza documentação que comprova a existência e a participação dela na guerra”, garante o historiador Manoel Passos, em entrevista exclusiva. “Temos um trabalho muito bem feito da historiadora Eny Kleyde Vasconcelos Farias, que não só resgata a história de Maria Felipa, como também os nomes das mulheres do grupo associado a ela, que, assim, saíram da invisibilidade”.

Para a historiadora Mary Del Priore, especializada no estudo das gentes brasileiras, o mais importante não é comprovar ou não a existência de Maria Felipa e de seus feitos, mas, sim, valorizar a “memória construída” pelos itaparicanos.

“Maria Felipa representa uma consagração para essas mulheres anônimas citadas no diário de lorde Cochrane”, diz Mary, referindo-se ao militar inglês contratado por D. Pedro I para comandar a Marinha brasileira na guerra. As histórias contadas por ele, conclui, ressaltam “a presença e grande participação de mulheres nessa luta em que a principal bandeira era a liberdade”.

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