Edição 04
Agosto
2024

Boa Morte celebra a vida

Foto: Xando Pereira

Jary Cardoso (texto)
Xando Pereira (fotos)

Tradicional e bissecular, patrimônio imaterial da Bahia. Agosto é um mês especial para Cachoeira, cidade histórica do Recôncavo baiano, 118 km da capital. Muita gente, até de fora do país, chega para a Festa da Boa Morte, criada há mais de 200 anos pela irmandade leiga de mulheres negras.

É quando cortejos e procissões que misturam catolicismo e candomblé se revezam com o samba de roda nas ruas e praças. E os visitantes podem se deliciar com as comidas de orixás e a maniçoba de origem indígena, tendo como paisagem deslumbrante a arquitetura colonial e o rio Paraguaçu.

Diante do mistério da morte e da tristeza pela
perda de pessoas queridas, exaltam-se a vida e
a Assunção de Maria aos Céus.

“A Virgem Maria, Iemanjá e Mani,
a raiz sagrada dos indígenas,
se misturaram e a cada dia
se misturam mais,
a cultura brasileira, meus ilustres!”

(Jorge Amado, manifesto publicado em 27.1.1995, na Folhade S. Paulo, em defesa do patrimônio em ruínas da Irmandadeda Boa Morte)

Rainhas negras nas ruas de Cachoeira

Foto: Xando Pereira

A programação oficial começa dia 13 de agosto, mas o primeiro evento público acontece algum tempo antes.

No dia 31 de julho, “uma comitiva das irmãs, vesti
das a caráter, de torço, com batas brancas e saias ro
dadas da mesma cor, se desloca até a casa da prove
dora da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte,
com o intuito de buscar a imagem da Virgem, uma
relíquia da instituição, seu maior patrimônio, datada
do século XVIII” – descreve Gustavo Falcón, doutor
em História Social e morador de Cachoeira.

 

Após as orações e ritos católicos no interior da casa, a comitiva sai de braços dados conduzindo o esquife da dormição de Maria em direção à Capela d’Ajuda, e canta: “Abençoe esta missão/ Virgem Mãe, Senhora Nossa/ Com a sua proteção/ Senhora da Boa Morte”. Adeptos do candomblé acompanham o cortejo, atirando pipocas e arroz sobre as irmãs, em clima de muita emoção e aroma de alfazema.

No primeiro domingo do mês, realiza-se a eleição da comissão para a festa do ano seguinte. Neste dia, são escolhidas a procuradora-geral, a provedora, a tesoureira e a escrivã. A votação é feita através da contagem de grãos de feijão e milho ofertados a cada uma das irmãs, simbolizando a rejeição ou aceitação de seu nome pelas outras companheiras.

O historiador cachoeirense Luiz Cláudio Nascimento, estudioso do sincretismo praticado pela Irmandade, conta que a partir de 12 de agosto as confreiras “ficam sete dias em obrigação, interditadas de ingerir
alguns tipos de alimentos, principalmente aqueles preparados com azeite de dendê e quiabo, considerados alimentos tabus. As casadas ficam proibidas de manter relações dias antes do início do festejo”

Foto: Xando Pereira

Andar com fé e energia

13 de agosto – Nesse dia, devotado à Senhora Morta e o primeiro do calendário católico das comemorações, as integrantes da Irmandade se confessam na sede antes de sair para rua. Segurando um pedestal com vela, rumam até a Igreja d’Ajuda para rezar e incensar o ambiente em torno do esquife da dormição.

18h – Na Capela da Irmandade é celebrada missa em memória das irmãs falecidas. Em procissão, conduzem o andor pelas principais ruas de Cachoeira.

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O traje de baiana é todo branco, desde o ojá de cabeça, feito de lenços que encobrem os cabelos, até as chinelas de couro, o que no candomblé significa luto. Xale de pano da costa cobre um dos ombros e o camisu em richelieu indica posição elevada na hierarquia da religião de matriz africana.

20h – De volta à sede, há uma ceia branca, privativa das irmãs e poucos convidados. No cardápio, peixe,pão e vinho.

22h – Elas fazem sentinela junto à imagem de Nossa Senhora da Boa Morte.

14 de agosto – Dia do enterro simbólico.

19h – Na sede, missa em louvor a Nossa Senhora e ahomilia trata da sua morte anunciada. “Maria Mãe de Deus rogai por nós, Rainha Imaculada rogai por nós” – as irmãs cantam para a imagem incensada pelo padre. Vestidas a rigor em preto e branco, saia plissada, blusa de manga, lenço na cintura, e acompanhadas por de votos e uma filarmônica, retornam às ruas com a imagem da Virgem. Em procissão à luz de velas, entoam “No céu/ No céu/ Com minha Mãe estarei”. No final, recolhem Nossa Senhora à capela da Irmandade.

15 de agosto – No último dia, cultua-se o mistério da Assunção, quando a Senhora Morta dá lugar a Nossa Senhora da Glória, sincretizada com Oxum.

5h – Alvorada com fogos de artifício.

10h – Um cortejo parte da sede em direção à Igreja Matriz. Sob o aroma do incenso, missa solene res salta a Assunção. Com a roupa de gala, “enriquecida da cor vermelha do pano da costa, significando alegria pelo vivo da cor, além de referência às cores de Omolu (vermelho e preto) e Iansã (vermelho), as irmãs portam muitas joias e balangandãs, manifesta alusão a Oxum”, observa Falcón. “Muito ouro e prata, em tudo lembrando o fausto e a pompa das negras do ‘partido alto’ dos tempos da escravidão”, acrescenta Nascimento.

11h – Em momento de forte emoção, ao sair da Matriz as irmãs jogam flores sobre a imagem altiva de Nossa Senhora da Glória e os fiéis aplaudem e dão vivas. Assim começa a longa e derradeira procissão que fecha a programação religiosa.

13h – A Irmandade serve feijoada a autoridades e convidados. Ainda na sede, acontece a cerimônia de posse da comissão organizadora da festa de 2025.

17h – Samba de roda no Largo da Ajuda comemora a Assunção de Maria.

16 de agosto

12h – A Irmandade serve um cozido à comunidade.

18h – Samba de roda no Largo da Ajuda.

17 de agosto

18h – Caruru, seguido de samba de roda e encerramento da festa.

Altivas e libertas

A Irmandade da Boa Morte existe em Cachoeira desde o começo do século XIX. Altivas e libertas, mulheres jejes-nagôs fugiram da perseguição da Igreja Católica e dos senhores do poder da capital.

Na literatura, não há uma data precisa sobre o surgimento da Irmandade em Cachoeira. Os primeiros sinais do grupo na Bahia são de 1810, em Salvador, a partir de escravas vindas da África.

Membros da Irmandade de Negros da Igreja da Barroquinha e do candomblé dedicado a Xangô – que funcionava nos fundos da igreja – também fugiram para o Recôncavo, onde fundaram várias irmandades que, com
o tempo, foram desaparecendo. Só a da Boa Morte de Cachoeira resistiu, com seus ensinamentos, preceitos, rituais e obrigações repassados oralmente de mãe para filha.

A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte é uma confraria religiosa afro-católica que, na sua origem, e por muito tempo, foi responsável pela alforria de inúmeros
escravos. Neste século, o grupo continua com sua missão social, agora dedicada principalmente à educação.

A história da confraria religiosa da Boa Morte se confunde com a maciça importação de escravos da África para o Recôncavo canavieiro da Bahia, em particular para a cidade de Cachoeira, a segunda em importância econômica na Capitania da Bahia durante três séculos.

O fato de ser constituída apenas por mulheres negras, numa sociedade patriarcal e marcada por forte contraste racial e étnico, emprestou a esta manifestação afro-católica, como destacam alguns autores, características únicas no universo de manifestações culturais na Bahia, seja pelo que expressa do catolicismo barroco brasileiro, de presença forte nas procissões de ruas, com a incorporação dos princípios e rituais religiosos aos festejos profanos pontuados de muito samba e comida.

Jary Cardoso, jornalista e escritor

SERVIÇOS
COMO CHEGAR
Cachoeira fica no Recôncavo, a 118 km de Salvador. Pela BR-324 (Salvador–Feira) são 60 km, até o entroncamento da BA-026; daí mais 12 km até Santo Amaro da Purificação e 39 km, pela mesma rodovia, até Cachoeira. A empresa Santana oferece linhas de ônibus diárias. Estação Rodoviária de Cachoeira, fone (75)3425-1214.

ONDE FICAR
Pousada do Convento, praça da Aclamação, centro. Fone (75)3425-1716. Diária: R$250, quarto para dois. * Pousada Treze de Março, rua Cunegundes Barreto, 9, centro. Fone (75)3425-5124. Diária: R$216, quarto para dois.*

ONDE COMER
Restaurante Pai Thomaz. Cardápio diversificado, serve maniçoba. Rua 25 de Junho, 12, centro. Fone (75)3425-3182. * Restaurante Maktub. Buffet de comida caseira. Rua Dr. João Vieira Lopes, 29, centro. Fone (75)99902-0882.* Hórus Bistrô Egípcio. Comida mediterrânea, do Oriente Médio e pratos veganos. Rua Monsenhor Tapiranga, 5, centro. Fone (71)99210-1342.

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