Edição 04
Agosto
2024

Itaparica, a joia preciosa da Baía de Todos-os-Santos

Foto: Divulgação

Oscar Paris

Foto: Rodrigo Chagas

Com origem tupi, Itaparica, “Cerca Feita de Pedras”, faz referência aos arrecifes que circundam a costa da ilha e que foram responsáveis pelo naufrágio de Francisco Pereira Coutinho, o Rusticão, em 1547. Abatido a golpes de borduna pelo irmão mais novo de um indígena assassinado por ele, o navegador foi solenemente devorado em jantar antropofágico.

Avistada em 1501 por Américo Vespúcio, a ilha também teve papel decisivo na Guerra da Independência da Bahia e do Brasil, entre 1821 e 1823, e cuja vitória consolidou o mito da heroína Maria Felipa, personagem que tem a própria existência cercada de mistério, polêmica e debates acalorados.

Joia da segunda maior baía navegável do mundo e maior ilha marítima do Brasil, com 239 km² de área e mais de 36 km de comprimento, Itaparica ostenta traços culturais que agrupam religiosidade, resistência e tradição. Pela sua riqueza histórica, culinária típica, praias de águas calmas, mornas e cristalinas, é conhecida como a Caribe da Bahia e um dos mais consagrados destinos turísticos do nordeste.

Com temperatura média anual em torno dos 25,3º, sacia a sede de nativos e visitantes com água recheada de atributos medicinais na Fonte da Bica, única estância hidromineral à beira-mar de toda a América. Jorrando em pleno Centro Histórico há quase dois séculos, sustenta a fama de operar o milagre do rejuvenescimento.

Por falar em milagre, a magia da ilha acolhe desde o legado místico ecumênico do eremita Venceslau Monteiro, passando pelos silenciosos templos católicos do Centro Antigo, até incontáveis terreiros de candomblé, como o TunTum, Mocambo e o Omo Ilê Agboulá, este dedicado ao culto aos egunguns e único da ilha tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).   

Itaparica ainda se fez berço do bispo Santiago de Jesus e dos imortais Francisco Xavier Ferreira Marques e João Ubaldo Ribeiro. Estreitar os laços com tanta beleza e diversidade é fácil. Basta cruzar a Baía de Todos-os-Santos ou viajar por terra, via Santo Antônio de Jesus, pela BR-101. Se preferir a comodidade do lar, é só se debruçar sobre as páginas dessa reportagem. Seja como for, faça uma boa e revigorante viagem.

O eremita e a água milagrosa

Foi durante um sonho que o eremita Venceslau Monteiro soube que o remédio para sua cegueira estava nas águas límpidas do riacho que corta a Área de Preservação Ambiental situada em Porto de Santos, próximo ao Terminal de Bom Despacho.

Curado, viveu 18 anos em uma choupana de palha, comendo o que a natureza oferecia e diante da Fonte dos Milagres que lhe devolveu a visão. Com cabelos compridos, barba espessa e uma túnica que lhe cobria do pescoço aos pés, recebia romeiros atraídos pela água terapêutica e pela fama de curandeiro que ultrapassou as fronteiras da ilha. A cobra coral de estimação “Sidina”, só fez aumentar a aura mística em torno de Venceslau. 

Local da barraca do eremita, entrada da mata onde o nasce a água milagrosa/ Foto: Rodrigo Chagas

A devoção despertou a ira dos proprietários da terra que entraram na justiça pleiteando reintegração de posse. Desiludido, Venceslau vagou pelo mundo e embarcou numa greve de fome que lhe fez definhar até a morte.

Consciência ambiental

Caio Conceição, em busca de conhecimento/ Foto: Rodrigo Chagas

A Associação Religiosa Cultural e Ambientalista (Arca), espécie de entidade mantenedora da reserva criada em 2005, tem a missão de manter o legado do homem que descobriu, usufruiu e democratizou a “Fonte dos Milagres” entre 1943 e 1961. Um templo simples ornado com a foto de Venceslau guarda a entrada da reserva. Depois de 300 metros de trilha, o visitante alcança o riacho que transformou a vida do eremita.

O lugar onde ele lavou os olhos é demarcado com fitas brancas. No local da antiga choupana, surgiu uma gruta de pedra que, além da imagem de Nossa Senhora da Piedade, guarda outra foto de Venceslau, flores e velas.

Caio Conceição, 24 anos, é sanitarista e yaô do Ilê Axé Azuani. “Frequento o Espaço Venceslau em busca de conhecimento”, esclarece, antes de pedir licença, com palmas e saudações em iorubá, para coletar folhas e água da Fonte dos Milagres usadas no ritual ecumênico.

Depois de colocar o pote no centro da mesa coberta com toalha branca, Caio complementa a ornamentação do altar com espadas de ogum. Discípulos vestidos com roupas brancas circundam a mesa e dão início às orações e louvores de agradecimento a Venceslau e aos espíritos da floresta. Uma salva de palmas encerra a cerimônia.

“Ele morreu no dia 28 de setembro, mesma data de seu nascimento”, revela o escritor Nelson Cadena, antigo morador de Itaparica. Tânia França, 68 anos, e há 17 como presidente da Arca, diz que “Venceslau era um ambientalista com consciência do sagrado e que usava a água como meio de chegar a Deus e ao inconsciente das pessoas, pois o que curava de fato era a fé e o merecimento”.

O sacerdote escultor do sagrado

Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi/ Foto: Divulgação

No início do século XX, foi fundado na ilha o primeiro terreiro do Brasil dedicado aos egunguns, os ancestrais masculinos desencarnados, segundo a crença iorubá. Localizado no Alto da Bela Vista, em Ponta de Areia, o Ilê Babá Agboulá é reconhecido por sua discrição e rituais secretos totalmente fechados, principalmente à participação feminina. 

O nome mais conceituado e respeitado no culto dos egunguns, seja na Bahia ou em África, é o baiano Deoscóredes Maximiliano dos Santos, Mestre Didi (1917-2013), cuja sabedoria guiou os caminhos do culto na ilha de Itaparica durante anos. Enquanto vivia, exerceu o posto maior no Brasil, supremo sacerdote dos egunguns (Alapini), filho de Maria Bibiana do Espírito Santo (1890-1967), Mãe Senhora, Oxum Muiuá, ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá.

Descendente direto da linhagem de Asipá, iniciado aos 8 anos, exprimia através da literatura e das artes plásticas toda a magia e força estética da ancestralidade e do culto às religiões afro-brasileiras. Premiado com a Ordem do Mérito Cultural, Mestre Didi, o Alapini, também foi agraciado com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia, entre dezenas de honrarias.

Obra de Mestre Didi em consonância com as heranças africanas/ Fotos: Divulgação
Obra de Mestre Didi em consonância com as heranças africanas/ Fotos: Divulgação

Seus trabalhos destacam-se pelo uso de materiais colhidos na natureza, como fibra de dendezeiros, búzios, contas, sementes e demais símbolos que remetem às tradições iorubá.  Um dos seus legados, a Sociedade Religiosa e Cultural Ilê Asipá, fundada anos 80, em Salvador, é tombada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (Ipac).

Misticismo vem de longe

“O misticismo da ilha começa com o canibalismo do inimigo, passa pela união inédita de um português com uma indígena, desemboca no catolicismo e cresce com o culto às religiões de matrizes africanas”, raciocina o escritor Nelson Cadena, que durante cinco anos morou em Itaparica, em uma barraca de madeira suspensa por causa da maré e coberta com palha de tiririca.

E como bem lembrou a atriz e artista plástica Sara Victória, moradora da sugestiva Rua da Alegria desde 2018, Itaparica leva um tempo para aceitar integralmente os estrangeiros. “É uma forma de proteção. É preciso mergulhar no cotidiano, se integrar ao modo de vida das pessoas, para só então usufruir do melhor que Itaparica pode oferecer, que é o acolhimento do seu povo.”

“Êh, água fina faz velha virar menina”

Sempre tem quem venha se benzer ou beber da água da bica/ Foto: Rômulo Portela
Sempre tem quem venha se benzer ou beber da água da bica/ Foto: Rômulo Portela

Um dos cartões postais mais visitados, a Fonte da Bica fornece, desde 1842, quando foi construída por José Felipe Nascimento, água cloretada sódica e, provavelmente por isso, é receitada em larga escala pelo povo da ilha para problemas de rins, baço, fígado, intestino, icterícia ou mesmo falta de disposição.

Suas propriedades medicinais diuréticas, em tese, explicam a frase poética de Frei Manoel de Santa Maria, ainda hoje estampada na Bica, e que dá título a esta matéria. Fato é, que a fonte, única estância hidromineral à beira-mar do continente americano, gera mais de 24 mil litros de água a cada 24 horas e de maneira ininterrupta. Estrofes do hino itaparicano decoram os azulejos portugueses. 

Fonte de saúde é também fonte de renda para Raimundo Nonato, conhecido por ‘Azêda’. Três os quatro vezes ao dia, ele chega na fonte com seu velho carrinho-de-mão e abastece os galões comercializados em bares, restaurante e residências por irrisórios R$1 cada.  “Na verdade, a gente paga só o transporte. Porque a água é de graça”, comemora Raimunda Santos Fernandes, 54 anos, dona do restaurante Jóia da Ilha, referência gastronômica:  “Nossa comida é toda feita com água mineral”, gaba-se dona Raimunda.

Viver é uma arte

O antropólogo e ensaísta Antonio Risério precisou de cinco anos para convencer sua mulher, a cosmopolita Sara Victoria, a se mudar de mala e cuia para Itaparica. Até que em 2018, a “carioca” nascida em Berlim cedeu à tentação. “Logo depois veio a pandemia e eu agradeci muito por estar aqui, isolada e respirando ar puro”, conta a atriz, que trocou os palcos e sets pelas tintas e pincéis.

Completamente adaptada à vida na ilha, Sara define sua rotina como a ideal para trabalhar, ainda mais agora que seu pincel não despreza nenhum tipo de superfície. São tecidos, telas, porcelanas, vidros, azulejos, madeira e tudo que absorve a tinta e a imaginação irrequieta da artista.

Sara Victoria encontrou na ilha um refúgio de paz. Foto: Rodrigo Chagas
Sara Victoria encontrou na ilha um refúgio de paz. Foto: Rodrigo Chagas

“Pinto a noite toda. Em qualquer horário. Sagrado mesmo é meu banho de mar”, diverte-se a neta da ativista Ana Montenegro, primeira brasileira a ser exilada pela ditadura militar. Depois da praia, o carinho das amizades: “Minha amiga Rosa, todos os dias me espera com um suco de cupuaçu gelado logo após o banho de mar”, revela Sara, antes de retornar à Rua da Alegria, onde mora e mantém seu ateliê.

As várias faces de um imortal

Dalva Tavares, a guardiã dos pertences de João Ubaldo/ Foto: Rômulo Portela
Dalva Tavares, a guardiã dos pertences de João Ubaldo/ Foto: Rômulo Portela

A Biblioteca Juracy Magalhães Junior vai inaugurar um memorial de João Ubaldo Ribeiro. O busto confeccionado por Ivana Leme e uma foto em forma de mosaico aguardam mobiliário que vai reunir obras e objetos pessoais de valor, como a máquina de escrever, canetas e fotos do escritor que ocupava a cadeira 34 da Academia Brasileira de Letras. Ubaldo escrevia na sala reservada da biblioteca.

Diretora da biblioteca por 38 anos, Dalva Tavares Lima era grande amiga de ‘JU’. “Ele e sua esposa Berenice Batella prometiam parar de fumar. Ele até que se segurava, mas bastava chegar no Largo da Quitanda, pegar jornal e dar um gole no uísque para descumprir a promessa e filar o cigarro de Bartolomeu (o Bartola de Viva o Povo Brasileiro). Ele fumava a carteira toda e depois comprava outra pro Bartola”, confidencia a amiga.

João Ubaldo não tinha hora para se refugiar no espaço onde dava asas à imaginação. Depois de uma temporada na Alemanha, foi surpreendido por dona Dalva: “Formei uma força tarefa e organizei a sala que ocupava. Quando viu tudo arrumadinho ficou furioso. Dizia que iria precisar de um mês para se situar. Me piquei e só voltei no outro dia. Encontrei o Ubaldo brincalhão e generoso de sempre”.

Turismo na ilha

COMO CHEGAR
Ferry Boat – Terminal de São Joaquim, em Salvador
Lancha – Terminal Marítimo atrás da Rampa do Mercado – Salvador
Por terra, via Santo Antônio de Jesus, através da BR-101. A Ponte do Funil faz a ligação entre ilha e continente.
PRAIAS
Ponta da Areia/Ponta do Mocambo/Praia do Boulevard/Praia do Forte/São João dos Manguinhos/Praia das
Amoreiras/Coroa do Limo/Porto dos Santos/Praia do Brasileiro.
ONDE FICAR
Sesc Itaparica – Centro/ Amigos Apartamento Pôr do Sol – Av. 25 de Outubro/ Hotel Icaraí – Centro/ Pousada
Muito Mais – Rua Antônio Calmon/ Pousada Nel Blu – Ponta de Areia/ Pousada Claro de Luar – Av. Beira Mar
ONDE COMER
Restaurante Montangner – Av. 25 de Outubro (culinária italiana)/ Restaurante Manguezal – Praia do Brasileiro
(culinária brasileira – frutos do mar)/ O Conselheiro – Av. Antônio Santos dos Navegantes (culinária caseira)/ Siri
Bóia – Praça Ten. João das Botas (culinária brasileira – frutos do mar)/
ONDE IR
Centro Histórico
CIRCUITO ALTERNATIVO
Reserva Venceslau – Porto dos Santos/Casa da Pedreira – Praia do Boulevard/Vila de Pescadores – Manguinhos/
Engenho Ingá-Açu – local da primeira máquina a vapor do Brasil/Estação Ecológica da Ilha do Medo – 3,5 km da ilha

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