A história em cada esquina
Cachoeira respira história em todas as esquinas. O estilo colonial da cidade está nas praças, ruas, becos, ladeiras, casas e monumentos, onde se destaca a arquitetura típica do Brasil Império.
Considerada Monumento Nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan – e tombada pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, em 1971, Cachoeira está encravada em um vale à margem esquerda do rio Paraguaçu, no Recôncavo Baiano.
Com 32 mil habitantes, é o segundo maior sítio, depois de Salvador, onde se encontra o mais importante acervo arquitetônico em estilo barroco de todo o estado. A importância política e econômica a transformou na sede da resistência brasileira nas guerras da Independência do Brasil.
A cidade é, também, uma explosão de fé e religiosidade manifesta nos rituais e nas festas populares, onde estão impressas as marcas da diversidade cultural baiana. A mais conhecida e tradicional acontece no mês de agosto, quando se celebra a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte.
Distante 116 km de Salvador, o município de Cachoeira está no coração do Recôncavo Baiano, em torno da Baía de Todos-os-Santos, que adentra do litoral para o interior do estado. No rico solo massapê multiplicaram-se os engenhos de açúcar, no tempo da escravidão. Mas a atividade comercial foi, talvez, segundo o historiador Ubiratan Castro de Araújo, mais importante para o desenvolvimento da vila do que a produção açucareira propriamente dita.
Situada no limite de navegação do Rio Paraguaçu, na fronteira entre o Recôncavo e o Sertão, por muito tempo foi a principal responsável pelo abastecimento de Salvador. O Vapor de Cachoeira, inaugurado em 1819, a primeira embarcação a vapor do Brasil, navegou até o ano de 1964, quando os governos militares determinaram que sua operação só fosse permitida dentro da baía, o que, evidentemente, o levou ao naufrágio comercial.
A beleza harmônica e bem preservada do conjunto arquitetônico colonial é puro encanto e história. Na Igreja do Rosarinho dos Pretos e no Cemitério dos Nagôs, espaços religiosos da comunidade africana, estão o maior acervo de documentos sobre a escravidão no Brasil.
No centro histórico, o Conjunto do Carmo, a Matriz, D’Ajuda e a Igreja de Nossa Senhora da Conceição do Monte são os grandes destaques juntamente com a Casa de Câmara e Cadeia e o Museu Hansen Bahia. Na zona rural, merecem atenção as igrejas de N.S. da Pena e de Belém (Santuário de Frei Galvão), Santiago do Iguape e o Convento de São Francisco do Paraguaçu.
É vasto também o patrimônio imaterial de Cachoeira, as manifestações culturais, do artesanato típico de cerâmica ao metal, bordado, couro e madeira. A gastronomia regional é reconhecida internacionalmente, com destaque para a maniçoba e os licores. Na outra ponta, estão a música e a dança, especialmente, suas chulas, filarmônicas (bandas de tradicionais formadas por músicos locais que se apresentam em grande parte das festas da cidade). E o samba de roda, tradição milenar do Recôncavo baiano, que detém o título de Obra-Prima do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.
Boa Morte celebra a fé e a vida
A cidade de Cachoeira é também uma explosão de fé e religiosidade que se manifesta nos rituais e nas festas populares, onde estão impressas as marcas da diversidade cultural baiana. A mais conhecida e tradicional acontece no mês de agosto, quando se celebra a Festa da Boa Morte. Mas as festas de N.S. do Rosário e de N.S. D’Ajuda, ambas de origem católica, e a Festa de Iemanjá também são destaques no calendário festivo da cidade. Os festejos dos santos juninos, principalmente o São João, é um dos maiores e mais tradicionais do estado.
Além das numerosas igrejas, Cachoeira reúne, de acordo com levantamento da Fundação Palmares (2018), 28 terreiros de candomblé e 15 comunidades quilombolas. A Irmandade da Boa Morte, origem e razão de ser da grande festa, é exclusivamente formada por mulheres negras descendentes de escravas africanas que preservam tradições e ensinamentos religiosos e culturais dos seus ancestrais. A devoção à Boa Morte, ou Dormição de Maria, como é chamada pelo povo, à Assunção da Virgem aos Céus.
A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte nasceu nas senzalas, dos engenhos de cana-de-açúcar, há cerca de 150 anos. Nasceu com o intuito de alforriar escravos ou dar-lhes fuga, encaminhando-os para o Quilombo do Malaquias, em Terra Vermelha, na zona rural.
São cinco dias de comemorações. No primeiro, saem em cortejo da Casa da Boa Morte para a Igreja de Nossa Senhora D’Ajuda, para pegar o esquife da santa. Fazem uma breve procissão, por apenas um quarteirão, com destino à capela da sede, onde celebram a memória das falecidas. Logo depois, ocorre a ceia, na Casa da Boa Morte, com pão, vinhos e frutos do mar. No restante dos dias, acontecem missas, confissões, sentinela, procissões nas ruas da cidade, apresentação de grupos de samba de roda e de capoeira.
Também promovem fartas e animadas festas, noites a fio, animadas pelo batuque do mais puro samba de roda de Cachoeira.
BAÍA DE TODOS-OS-SANTOS
Águas tropicais banham o Recôncavo e o reconvexo
Descoberta em 1501, pelo navegador português Américo Vespúcio, a Baía de Todos-os-Santos (BTS) está situada no meio da costa do Brasil. Tem uma superfície de aproximadamente mil quilômetros quadrados e um contorno com 238 quilômetros de extensão. É a maior baía do Brasil e a segunda maior do Atlântico. Possui uma entrada com 33 quilômetros de largura, no sentido Leste-Oeste, e 36 quilômetros de comprimento no sentido Norte-Sul.
É possível navegar por quase toda extensão da BTS, observando o calado da embarcação. Rota natural de navegação entre a Europa e o Brasil, desde o século XVI, a BTS foi considerada o principal porto do Atlântico Sul, devido às águas propícias para a navegação. Correntes marítimas e ventos favoráveis praticamente conduzem as embarcações a vela, desde a Linha do Equador até a entrada da baía.
Pelas suas características peculiares, integrou uma das principais rotas de navegação do cenário econômico do país, a partir de meados do século XVIII, transformando a Bahia no principal porto do país.
Embora Cachoeira seja a cidade mais conhecida pelas guerras da Independência, muitos outros municípios do Recôncavo Baiano desempenharam papel fundamental nas batalhas contra o jugo português. Repletas de história e cultura, as cidades do entorno da Baía de Todos-os-Santos oferecem atrativos para todos os gostos, e contam os primeiros anos da história da Bahia e do Brasil.
Além de Salvador e Cachoeira, o Recôncavo Baiano é composto, por exemplo, por Candeias, Madre de Deus, São Francisco do Conde, Itaparica, Vera Cruz, Salinas da Margarida, Saubara, São Félix, Maragogipe, Santo Amaro da Purificação, Muritiba, Jaguaripe, Nazaré, Aratuípe e Muniz Ferreira.
SANTO AMARO
O melhor o tempo esconde, longe, muito longe mas bem dentro aqui
Além da concorrida festa Lavagem de Santo Amaro, é o Bembé do Mercado de Santo Amaro da Purificação a grande manifestação popular da cidade, nascida em sequência à promulgação da abolição da escravatura. O historiador Ubiratan Castro de Araújo assinala que é a afirmação da cidadania negra no Brasil: “Eliminados quaisquer traços de subserviência agradecida à princesa pela abolição, emerge a evidência histórica da luta popular contra o cativeiro e da força da cultura afrobrasileira como propulsora da resistência do povo negro no Brasil.”
Vamos à história. Aos 14 de maio de 1888, começava uma nova luta para o povo negro de Santo Amaro. Fazer valer a lei. Os ex-senhores de escravos estavam inconformados e mobilizaram o aparato policial para tolher os movimentos do povo. E assim teria sido, sem a resistência nos terreiros para fazer valer a liberdade.
Passado um ano de luta, eles foram às ruas festejar o primeiro aniversário da Lei da Abolição. Apesar de tudo e de todos, no dia 13 de maio de 1889, milhares de pessoas afluíram ao mercado de Santo Amaro. Não se viu nenhuma parada cívica, não se ouviu nenhum discurso de agradecimento à princesa.
Os negros “bateram candomblé” no centro da cidade e depois jogaram presentes ao mar, saudando os orixás. E, assim, ninguém mais ousou impedir que exercessem suas tradições e cultura. Estava instituído o Candomblé da Liberdade.
Santo Amaro da Purificação é o berço de uma farta lista de nomes importantes para a história do país, cantada em prosa e verso ao longo do tempo. Como já cantou o poeta nativo, cantor e compositor Caetano Veloso, foi ali, naquela cidadela canavieira, bem à beira do cais de Araújo Pinho, que debaixo do pé do tamarindeirinho, o Imperador fez xixi…
Terra da professora e poeta Amélia Rodrigues e do engenheiro Teodoro Sampaio. Da família de Dona Canô, dos irmãos Veloso, Caetano e Bethânia. Dos cantores, compositores e poetas Roberto Mendes, Jorge Portugal, Dona Edith do Prato e Popó do Maculelê. E mais: Assis Valente, autor de sucessos como Brasil Pandeiro e da eterna canção natalina Boas Festas (“Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel…”).
Sem esquecermos-nos de Tia Ciata (Hilária Batista de Almeida 1854-1924), mãe de santo, cozinheira que foi um dia morar no Rio de Janeiro (1876) e levou o samba de roda do Recôncavo na bagagem. Pois foi em sua casa na Praça Onze, onde os músicos reuniam-se, Pixinguinha entre eles, que foi criado o primeiro samba gravado em disco – Pelo Telefone – uma composição de Donga e Mauro de Almeida, na voz do cantor Baiano, também nascido em Santo Amaro da Purificação.
A sonoridade do quintal de Tia Ciata saiu dali e subiu os morros cariocas para encantar as escolas de samba do Rio de Janeiro.