Edição 04
Agosto
2024

Cosme de Farias

Passou a vida lutando contra o analfabetismo

Almanaque da Bahia

O pai da pobreza

Orador de improviso, Cosme empolgava a multidão

Lá vinha ele, com sua bandeirinha de papel, com seu colarinho alto bem engomado, todo de branco, inclusive o pouco cabelo e a barba por fazer. Vinha, já com os passos meio claudicantes nos seus últimos anos de vida, mas, como sempre, firme na sua caminhada, abrindo os desfiles cívicos da Cidade da Bahia e trazendo a sua faixa com o lema da sua luta: Abaixo o Analfabetismo! Lá vinha o Major Cosme de Farias. Vinha sempre aplaudido por toda a sua gente, que o amava e lhe chamava de “pai da pobreza”, pela defesa incansável dos fracos e excluídos.

Cosme de Farias, que recebeu a patente de Major da Guarda Nacional em 1909, nasceu em São Tomé de Paripe, bairro do subúrbio ferroviário de Salvador, e tinha apenas o curso primário.

. Mas tornou-se um rábula e dedicou sua vida à defesa dos pobres, das pessoas sem condições de pagar um advogado. Em 1915, fundou a “Liga Baiana contra o Analfabetismo”, instituição que funcionou até a década 1970. Publicou cartilhas, manteve e sustentou escolas para a população mais humilde, nas periferias da capital e até em algumas cidades do interior.

Pastinha e a viúva de Corisco

No tribunal do júri, tirou algumas vezes o Mestre Pastinha da cadeia, por jogar capoeira, o que era proibido na época. Tornaram-se amigos e Cosme lhe deu um emprego, tornando-o por um tempo seu segurança pessoal. Ganhou notoriedade nacional quando obteve um habeas corpus em favor da ´cangaceira’ Dadá, em 1942, Sérgia Ribeiro da Silva, viúva do famoso Corisco, homem da confiança de Lampião, o Capitão Virgulino Ferreira.

Cosme de Farias, que, segundo o escritor Jorge Amado, inspirou o personagem ‘Tadeu, filho de Doroteia, Iaba’, do livro Tenda dos Milagres, transformado em filme por Nelson Pereira dos Santos, também foi parlamentar. Começou a carreira política em 1914. Foi eleito vereador de Salvador e deputado estadual por vários mandatos. Quando morreu, em março de 1972, tinha cadeira na Assembleia Legislativa; era, à época, o mais velho parlamentar do país, quiçá do planeta.

Um mar de gente na despedida

Cosme de Farias tornou-se nome do bairro onde viveu por muito tempo e lá morreu, numa casinha simples, no meio de seu povo, tomando alguns goles de cachaça todos os dias. O enterro do Major Cosme, em março de 1972, foi um assombro, a cidade literalmente parou. Um mar de gente carregou o caixão que saiu da Igreja de São Domingos, no Terreiro de Jesus, até o Cemitério de Quinta dos Lázaros, num fim de tarde, erguido no alto pela multidão. Passou pela Praça da Sé, Misericórdia, desceu a Ladeira da Praça, toda a Baixa dos Sapateiros, Aquidabã, Sete Portas, Dois Leões até o cemitério na Baixa de Quintas.

A multidão levou o caixão nas mãos erguidas até a cova do cemitério, 1972 Foto: Arquivo O Cruzeiro

Chegou já à noite na sua última morada. Cova no chão, multidão nunca vista, gente até em cima dos muros, árvores e telhados – um deles desabou. Houve uma disputa entre os corneteiros da PM e dos Bombeiros para tocar o ‘Toque fúnebre’, quase saíram aos tapas, o caixão à beira da tumba esperando pra descer.

Salomonicamente, tocaram os dois, um depois o outro. Nenhum político ousou levar o caixão, pongar no cadáver, o povo não deixou.

O perdão do Senhor do Bonfim

Contam de uma atuação de Cosme de Farias como advogado. Veja:

Um ladrão pé-rapado entrou na Igreja do Senhor do Bonfim e teria roubado as esmolas. Cosme de Farias foi defendê-lo no júri:

– Senhores jurados, não houve crime. Houve foi um milagre. Senhor do Bonfim, que não precisa de dinheiro, é que ficou com pena da miséria dele, com mulher e filhos em casa com fome e lhe deu o dinheiro, dizendo assim: “Meu filho, este dinheiro não é meu. Eu não preciso de dinheiro. Este dinheiro foi o povo que trouxe. É do povo com fome. Pode levar o dinheiro”. E ele levou.

– Que crime ele cometeu? Se houve um criminoso, o criminoso é o Senhor do Bonfim, que distribuiu o dinheiro da Igreja. Então, vão buscá-lo agora lá e o ponham aqui no banco dos réus. E ainda tem mais. Senhor do Bonfim é Deus, não é? Deus pode tudo. Se ele não quisesse que o acusado levasse o dinheiro teria impedido. Se não impediu, é porque deixou. Se deixou, não há crime.

E o réu foi absolvido.

Cosme de Farias foi casado com Semíramis Farias, falecida em 1963, sem filhos. O único irmão de que se tem notícia era-lhe gêmeo e morreu muito cedo. O Major foi responsável pela inauguração da primeira escola pública de educação de adultos da Bahia. Jornalista, articulista e poeta, lançou, em 1926, o seu primeiro livro “Lama e Sangue” (uma coletânea de artigos) e em 1933, publicou o livro de poesia “Estrophes”. * 2 de abril de 1875/+ 14 de março de 1972

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