Edição 04
Agosto
2024

Viva São Lázaro, Atotô Obaluaê!

Sabejê, o rito religioso circula pela cidade do Salvador/ Foto: Elói Correa/Secom-BA

José de Jesus Barreto

Agosto é o mês do vento

Que vem limpar o tempo

Pro cheiro da primavera

No céu, arraias

No chão, quimera.

Agosto é do dono da terra

Em agosto, nas ruas de Salvador e cidades do Recôncavo baiano é comum a gente ver pessoas vestidas de branco com balaios enfeitados de palhas, cheios de pipocas e uma imagem de São Lázaro, a andar contritas e rogar em voz baixa: ‘Missa pedida pra São Lázaro!’. Não são pedintes, é o povo de santo dos terreiros de candomblé da velha Bahia, e a caminhada pelas ruas faz parte de um ritual chamado Sabejé, dedicado a Omolu ou Obaluaê, Xapanã, Sapatá, uma entidade vinculada ao chão, o Velho, Senhor da Terra, o orixá das curas.

Sabejé, junção de “Sá” (caminhar/andar), “agbé” (esmola) e “jé” (comer), é um rito que antecede às festas com danças, comilanças, banhos de pipocas e atabaques nos barracões dos terreiros, para o orixá, e às missas para São Lázaro e São Roque nos templos católicos (dia 16 agosto), santos romanos sincretizados desde os tempos coloniais com o orixá.

O Sabejé é tradição, significa a visita, o passeio de Omolu pelas ruas da cidade, o contato dele com as pessoas, através do uso ritualístico das pipocas (deburu), a comida litúrgica do orixá. Cultura, história, misturas, coisas da Bahia.

Orixá que ajuda a quem precisa

Omolu (Obaluaê, Xapanã, Sapatá, a depender do terreiro, da ancestralidade africana) é o protetor dos doentes, o que cuida das moléstias da pele e dos males contagiosos, chamado também de ‘o velho’, cujo nome é até perigoso de ser pronunciado em vão, aquele que pune os malfeitores. Atotô!, dono da terra e filho do Senhor, é a sua saudação. Seu dia, nos terreiros de não Ketu/Nagô baianos, é a segunda-feira, seus adeptos usam o lagdibá, um colar/guia feito de pequenas peças, contas de cor preta ou marrom e preto.

Omolu dança encurvado, demonstrando sofrimento e dor, com o rosto e todo o corpo coberto com palhas da costa/fibras desfiadas de dendezeiros e um xaxará na mão (espécie de vassoura feita de palmeiras), com cabaças penduradas.  Gosta de pipocas, bode, galo e milho cozido em folha de bananeira. Seus filhos são geralmente desajeitados, reservados e lentos, com tendência ao pessimismo, quase sempre insatisfeitos, mas são bons conselheiros e altruístas, capazes de esquecer seus próprios interesses e necessidades por conta de ajudar a quem precisa.

Rum de Omolu, no Ilê Axé Babá Elemossó – Babalorixá Dielson
 Foto: Dario Guimarães Neto
Rum de Omolu, no Ilê Axé Babá Elemossó – Babalorixá Dielson Foto: Dario Guimarães Neto

O homem que Jesus ressuscitou

Festa de Obaluaê – Olubajé, no Ilê Axé Oyá Mesi – Ialorixá Mãe Carmen 
Foto: Dario Guimarães Neto
Festa de Obaluaê – Olubajé, no Ilê Axé Oyá Mesi – Ialorixá Mãe Carmen Foto: Dario Guimarães Neto

Omolu é tratado com especial respeito e cuidados pelos praticantes das religiões afro-brasileiras. Até por ter essa divindade um grande poder de intervenção na vida, nos campos das enfermidades e da cura. Sua imagem às vezes até assusta os que não conhecem seu simbolismo. Por conta das chagas, ele se manifesta todo coberto, da cabeça aos pés com palhas. Esse imagético do orixá levou ao sincretismo popular com São Roque e São Lázaro, que são representados nos altares das igrejas como sofridos peregrinos com cães aos pés ou lambendo suas feridas.

São Roque, o santo da igreja romana, teve seu martírio e divinização vinculados a uma vida dedicada ao tratamento e cuidados dos acometidos pela Peste Negra, que dizimou meio mundo de gente. São Lázaro é aquele dos evangelhos, leproso, que foi ressuscitado por Jesus depois de alguns dias já enterrado.

Pipocas curandeiras dos males

As pipocas/deburus, elemento básico das cerimônias a Omolu, nas ruas e terreiros, e também aos santos católicos Roque e Lázaro nas portas das igrejas baianas, simbolizam flores ou as marcas da varíola que a entidade e os santificados traziam na pele, no corpo. Omolu/Obaluaê é um orixá, por assim dizer, bem próximo aos domínios da morte, mas as oferendas a ele não são arriadas em cemitérios; são rituais feitos em lugares mal iluminados, cavernas e troncos de árvores que já morreram.

Para o povo de santo, seguidor das religiões de matriz africana, o banho de pipoca é uma espécie de “limpeza espiritual”, uma troca de energia. Joga-se na cabeça ou se passa o grão no corpo da pessoa, e qualquer energia ruim vai pro grão, enquanto a energia boa do grão vai pra pessoa. Quando a pipoca vai ao chão, tudo que é ruim se desfaz, porque o solo é poderoso, sustenta nossa energia vital. “Passamos o deburu [milho, em iorubá] para termos paz, vida e saúde com abundância”, ensina a Mãe Preta, Yá de Terreiro.

Festa de Obaluaê, no Ilê T’omi Kiosesè Ayó – Ialorixá Iara D’Oxum Foto: Dario Guimarães Neto

Um anjo entre a vida e a morte

Na umbanda, religiosidade crescente e bem difundida no Brasil, cada entidade traz uma história, significados e vibrações diferentes. Omolu, por exemplo, é tratado com um certo temor, pelo poder que lhe é atribuído, de fazer a passagem entre a vida e a morte. Omolu na umbanda é o “rei e dono da terra”, o orixá que cuida da morte, da terra e do fogo. Nas casas de umbanda, o orixá é apresentado de duas formas e forças distintas.

A primeira, num corpo jovem, o Obaluaiê, sincretizado com São Roque; e a segunda, num corpo mais velho, o Omolu, sincretizada com São Lázaro. Obaluaiê trabalha como guia das almas que vão iniciar uma nova jornada, com o potencial de renovação e de cura, auxiliando também no tratamento de doenças e ajuda aos profissionais da saúde. Já Omolu é quem está presente no processo de morte; em hospitais, necrotérios e cemitérios, ele guia os espíritos desencarnados para o mundo espiritual. Assim, na umbanda, Omolu faz o papel de um anjo da morte, referência de outras religiões e culturas por esse mundo afora.

Pisou nas flores e foi castigado

Obaluaê era um menino muito desobediente. Um dia, ele estava brincando perto de um lindo jardim repleto de pequenas flores brancas. Sua mãe lhe havia dito que ele não deveria pisar as flores, mas Obaluaê desobedeceu à sua mãe e pisou as flores, de propósito. Ela não disse nada, mas quando Obaluaê deu-se conta estava ficando com o corpo todo coberto de pequeninas flores brancas que se foram transformando em pústulas, bolhas horríveis.

Obaluaê ficou com muito medo. Gritava pedindo à sua mãe que o livrasse daquela peste, a varíola. A mãe de Obaluaê lhe disse que aquilo acontecera como castigo, porque ele havia sido desobediente, mas ela iria ajudá-lo. Ela pegou um punhado de pipocas e jogou no corpo dele e, como por encanto, as feridas foram desaparecendo.

Obaluaê saiu do jardim tão bom como quando havia entrado” (Reginaldo Prandi, do livro ‘Mitologia dos Orixás’ – Cia das Letras/2006)

José de Jesus Barreto, jornalista e escrevinhador

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