Edição 04
Agosto
2024

Nos sobrados da velha São Salvador

Foto: Dario Guimarães Neto

Centro Histórico

O apito grave do navio no porto rasga a zoada do burburinho cotidiano no Centro Histórico. De mirantes da Cidade Alta, vê-se a bocarra mansa da Baía de Todos-os-Santos e o porto instalado em local estratégico, escolhido por Thomé de Sousa.

Se Varnhagen, pensando na Baía de Todos-os-Santos com seus arquipélagos cortados por saveiros, dizia ser o Recôncavo da Bahia “uma paragem (…) por muitos títulos análoga à da antiga Grécia”, a cidade do Salvador seria sua Acrópole, título que não escapa ao guia de turismo no local.

Também batizada “Roma africana” por saudosa mãe Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá, de fato não faltam referências da antiguidade para descrever a clássica capital baiana. A Praça da Sé com seu casario, o Terreiro de Jesus – haverá outro lugar no mundo onde “terreiro” e “Jesus” encontram-se tão fecundamente? – e seu conjunto barroco, tudo inspira e respira história.

Se estiver nas imediações do Mercado Modelo, na Cidade Baixa, e quiser conhecer o coração da velha Salvador dos sobrados coloniais, embarque no sonho louco do sábio Antonio de Lacerda e suba para a Cidade Alta no balanço de seu famoso elevador.

Lá em cima, aprecie à direita o imponente Palácio Rio Branco, sede do 1º governo-geral da Colônia – construído, em taipa e palha, em 1549. O prédio vai ser transformado em hotel de luxo. Tome um sorvete em A Cubana, na saída do elevador, sabores da terra.

Volte-se para à esquerda, e se surpreenda com o Palácio Thomé de Sousa, sede da prefeitura, projetada em estrutura de aço e vidro pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o “Lelé”.

Na Praça Thomé de Sousa está a Câmara Municipal, prédio em estilo colonial – situado também no local original da Casa de Audiência e Câmara, erguida em taipa e palha no mesmo ano de fundação da cidade.

Só se vê por aqui

Seguindo em frente, você pisará no Terreiro de Jesus.

À esquerda, está a Catedral Basílica e, em frente, do outro lado dessa praça, a Faculdade de Medicina. Ambos os prédios formavam um único conjunto, o Colégio dos Meninos (1550), tendo ao lado uma capela em taipa, destinava-se a catequizar os curumins tupinambás.

Dois séculos depois, a antiga capela já se transformara em Catedral metropolitana e, em 1923, elevada à categoria de Basílica, e seu arcebispo intitulado Primaz do Brasil. Vale entrar no templo e conhecer os 13 altares, o acervo de telas do século XVI, os móveis em jacarandá, os objetos sacros em ouro e prata.

Vizinha à Basílica, a Faculdade de Medicina domina a paisagem. O prédio, construído em 1905, onde existiu o Colégio dos Jesuítas, foi tombado pelo Iphan e é considerado pela Unesco como Patrimônio Mundial da Humanidade. Hoje, abriga departamentos da Faculdade e os museus Afro-Brasileiro e de Arqueologia e Etnologia.

Fé e fartura de cultura

Clarindo Silva, símbolo de resistência do Patrimônio da Humanidade/ Foto: João Lins

Na Cantina da Lua, esquina do Terreiro de Jesus, abrigo dos boêmios e vanguarda do projeto de revitalização do Centro Histórico de Salvador, Clarindo Silva, 82 anos, testemunhou muitos momentos distintos do centro e seu povo: não sem interromper a palestra com uma ou outra lágrima, arrepio de quem se entrega de corpo e alma à cidade e sua história.

Além de saborear um de seus pratos, puxe conversa com o dono deste bar, restaurante e casa de shows. Jornalista e escritor, Clarindo lembra com angústia os incêndios criminosos que se seguiram ao tombamento do Pelourinho como Patrimônio da Humanidade pela Unesco em 1985. Aos meninos de rua assediados pela grana de agentes imobiliários para incendiarem casarões, Clarindo exortava: “Os velhos sobrados e igrejas, aquele casario antigório e calçamento pé-de-moleque, o patrimônio arquitetônico do velho Pelourinho, tudo aquilo era deles. Seus antepassados, sequestrados do continente africano, é que haviam, a duras penas, erguido aquilo tudo. Isto aqui é de vocês. É nosso. E não há dinheiro que possa pagar isto”.

Igreja do Rosário dos Pretos

Em 1704, a Irmandade de Nossa Senhora dos Homens Pretos, sediada na antiga Sé, começou a construir sua própria igreja no Largo do Pelourinho. Trabalhando nas horas vagas, os confrades concluíram as obras no final daquele século. Vá visitá-la num domingo e deslumbre-se com a beleza da construção e o sincretismo da missa rezada ao som de atabaques, os fiéis com seus crucifixos e amuletos.

Igreja de São Francisco

Uma das “sete maravilhas de origem portuguesa no mundo”, o conjunto arquitetônico, integrado pela igreja e o convento dos frades franciscanos, construído mais de dois séculos após a fundação de Salvador. De frente para o templo, no Largo do Cruzeiro de São Francisco, curta a ornamentação da portada em pedra. E, ao entrar, o estilo barroco surpreende: o ouro reveste tudo ao seu redor, teto e paredes, adornadas por azulejos portugueses do século XVIII.

Fundação Casa de Jorge Amado

No Largo do Pelô, exposição permanente sobre Jorge Amado, seus livros publicados nos cinco continentes, fotografias, cartazes e mais um acervo de 250.000 documentos para pesquisas.  A instituição incentiva estudos e realiza cursos, seminários, oficinas, lançamentos de livros, exposições e abriga, anualmente a Feira Literária Internacional do Pelourinho (Flipelô).

Centro Cultural Solar do Ferrão

Rua Gregório de Mattos, 45, casarão do século XVIII, abriga o Museu Abelardo Rodrigues, 808 peças de arte sacra, e a galeria, com as “Plásticas Sonoras”, de Walter Smetak, e os instrumentos de Emília Biancardi, além de coleções de arte africana e de arte popular.

Os tambores batem mais forte no Pelô

Olodum ganhou o mundo. E Michael Jackson gingou no Pelô/ Foto: Divulgação

A história viva, as igrejas, museus, bares, restaurantes e o jeito único de ser do povo negro, pardo e mestiço de Salvador são um verdadeiro antídoto ao tédio. Jamais ao ócio.

Patrimônio da Humanidade, o conjunto dos velhos sobrados, casarões e palácios do Centro Histórico guardam, além das suas riquíssimas igrejas e museus, as sedes de duas instituições mundialmente famosas, que enchem de orgulho todos os filhos da capital da Bahia: o Bloco Afro Olodum e o Afoxé Filhos de Gandhy, que, ao lado do Ilê Aiyê, levaram o som desta cidade para os quatro cantos do planeta.

Hoje, a marca do Olodum, criada no Pelourinho, riscada num guardanapo pelo publicitário baiano João Silva, que juntou as cores do movimento Pan-africano, verde, amarelo, vermelho e preto com o símbolo da paz, é uma das mais conhecidas no Brasil, quiçá no mundo.

Gravou com Paul Simon (1990) no Pelourinho – The Obvious Child. Em 1991, tocaram juntos para 750 mil pessoas no Central Park, em Nova York. E consolidou seu prestígio, em 1996, quando o pop star Michael Jackson veio a Salvador gravar o clipe de “They Don’t Care About Us”, sob direção do cineasta Spike Lee.

O mundo inteiro passou a conhecer o samba reggae, criado pelo saudoso Neguinho do Samba. Vale destacar, ainda no Pelô, a Banda Didá, organizada por Neguinho do Samba e integrada apenas por mulheres.

A branca luz da paz

Outro símbolo muito forte do Centro Histórico, o Afoxé Filhos de Gandhy, neste 2024 comemora 75 anos de história. O tapete branco da paz, fundado por trabalhadores negros do cais do Porto de Salvador, foi inspirado pela filosofia da não-violência de Mahatma Gandhi e, até hoje, propaga a paz, a igualdade e a resistência cultural. O afoxé também se tornou uma potência e referência na cultura afrobrasileira, conectando os rituais do candomblé ritmados pelo agogô aos seus cânticos de ijexá na língua iorubá.

A partir de 1976, o Gandhy passou a contar com a participação de artistas como Gilberto Gil e Jorge Amado. Gil ajudou o afoxé a retornar ao Carnaval. Formado exclusivamente por homens vestidos com turbantes, lençóis e toalhas brancos, o afoxé oferece perfume de alfazema e colares azul e branco aos admiradores como forma de lhes desejar paz durante o Carnaval e ao longo do ano.

Gilberto Gil cantou: “Manda descer pra ver... Filhos de Gandhy”/ Foto: Eduardo Freire/G1
Gilberto Gil cantou: “Manda descer pra ver... Filhos de Gandhy”/ Foto: Eduardo Freire/G1

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