Edição 04
Agosto
2024

Maria Graham

As aventuras de uma inglesa nas lutas da Independência do Brasil

Sylvia Porto Alegre

Maria Dundas Graham, Lady Calcott, ganhou notoriedade no Brasil devido às três viagens que realizou, entre 1821 e 1825. Escritora, desenhista e herborista, ela fazia parte de um círculo intelectual que defendia ideias liberais e a abolição da escravidão, alinhadas com a política externa britânica. Aos 36 anos, Maria Graham acompanhou seu marido, o capitão da marinha Thomas Graham, em missão oficial à América do Sul, cujo objetivo era proteger os interesses ingleses e observar as colônias rebeladas de Portugal e Espanha.

A tripulação da fragata Dóris avistou Olinda em 21 de setembro de 1821. Os tumultuados eventos presenciados em Pernambuco, na Bahia e no Rio de Janeiro foram publicados por Maria Graham no livro Diário de uma viagem ao Brasil, que constitui uma valiosa fonte histórica e etnográfica sobre a vida social e política, a cultura e a população dos lugares visitados.  

Durante a estadia em Salvador, de outubro a dezembro de 1821, o navio ficou ancorado na Baía de Todos-os-Santos, de onde se podia contemplar o magnífico panorama da cidade. Ali, ficavam a igreja de Santo Antônio da Barra e a enorme gameleira do bairro da Graça que Maria registrou em seus desenhos.             

Ela visitou igrejas, conventos e o mercado de escravos. Conheceu famílias da elite local, foi à ópera no Teatro São João, provou a comida das pretas livres no Mercado do Peixe, cruzou a baía até a Ilha de Itaparica. Não deixou de observar que havia “uma grande desconfiança de estrangeiros no presente governo; daí não ter conseguido entrar em muitos edifícios públicos” como desejava.

A Bahia estava sob o governo de uma junta provisória desde fevereiro, quando o governador conde da Palma foi destituído. As revistas das tropas nas ruas ocorriam diariamente. Salvador contava com seis corpos de milícia, Cachoeira e Pirajá com outros tantos, totalizando cerca de 15.000 militares na província. Além dos oficiais de cavalaria e dos regimentos de brancos, havia também regimentos de mulatos e negros livres, todos bem armados e equipados, sendo que o de negros era “o mais treinado e mais ativo, como corpo de infantaria ligeira”.

Paus e pedras contra fogo cruzado

Batalhão Provisório da Bahia

Uma crise se avizinhava: “O partido que se opõe a esta junta fala claramente em independência”, observou Maria Graham. Os rebeldes apoiavam D. Pedro I, mantinham conexões com o Rio de Janeiro e desejavam romper com Portugal. Exigiram a deposição da junta provisória, porém foram derrotados, depois de ocupar o forte de Santa Maria numa luta desigual.

O capitão Graham adoeceu quando a cidade se preparava para a festa de Nossa Senhora da Conceição, celebrada em oito de dezembro. Poucos dias depois, o novo governo, liderado pelo general Inácio Luís Madeira de Melo, atacou o forte de São Pedro e o Convento da Lapa, onde sóror Joana Angélica foi executada. Esse episódio marcou o início de uma guerra sangrenta que só terminaria em dois de julho de 1823.

Após quase seis meses de permanência no Brasil, a embarcação Dóris partiu em direção ao Chile. Durante o trajeto, a saúde do capitão Graham piorou e ele morreu antes de chegar ao destino final. Maria ficou sozinha e viúva. Diante dessa situação, ela decidiu permanecer no Chile, onde estabeleceu amizade com o almirante Thomas Cochrane, a quem acompanhou nos campos de batalha durante a instalação da república chilena.

Quando o governo brasileiro convidou lorde Cochrane para comandar a ofensiva marítima contra os portugueses que dominavam a Bahia, Maria Graham não hesitou em retornar ao Rio de Janeiro com ele, no início de 1823. O processo de rompimento do domínio português, comemorado em 1822, ainda não estava completo, o país estava fragmentado. Havia conflitos armados na província Cisplatina, na Bahia, em Pernambuco, no Ceará, Piauí, Maranhão e Pará.

A marcha da vitória nas ruas da Bahia

Durante a segunda viagem de Maria ao Brasil, uma guerra devastadora dilacerava a Bahia, colocando o Rio de Janeiro em risco de bloqueio e intervenção militar. As expectativas de Cochrane eram estabelecer um bloqueio por mar contra as forças de Madeira de Melo e, em conjunto com o Exército em terra, garantir a independência do recém-proclamado Império do Brasil.  O almirante chegou a Salvador com nove embarcações, compostas por oficiais estrangeiros, marinheiros portugueses e brasileiros e negros libertos e escravos.

Cadeira
Cadeira

Instalada no Rio de Janeiro, Maria testemunhou as intensas dificuldades enfrentadas em Salvador, onde graves problemas de abastecimento, fome e doenças assolavam a população. Havia pessoas morrendo de inanição pelas ruas, e o número de famílias forçadas a abandonar a cidade sitiada e buscar refúgio no Recôncavo aumentava.

Mulher do mercado e carregadora de água

Após uma tentativa inicial frustrada, Cochrane finalmente conseguiu interromper a entrada de suprimentos no porto e estabelecer um bloqueio efetivo da Baía de Todos-os-Santos. Em dois de julho, o Exército Pacificador brasileiro adentrou a cidade pela Estrada das Boiadas (Liberdade), passou pela Lapinha e Soledade, alcançou o Terreiro de Jesus e a Praça da Câmara Municipal. Outras tropas avançaram vindas de Brotas e uma terceira força ocupou os bairros da Graça e Vitória. Acuados por terra e mar, os portugueses foram obrigados a abandonar o país e zarpar rumo a Lisboa.

Vestido de festa

“Afinal, a Bahia caiu”, comemorou Maria Graham ao receber um bilhete de Cochrane que relatava: “…comunico que expulsamos o inimigo para fora da Bahia. As fortalezas foram abandonadas esta manhã e os navios de guerra, em número de 13, com cerca de 30 barcos de transporte e navios mercantes, estão em caminho. Acompanhá-los-emos (isto é, a Maria da Gloria e a Pedro Primeiro) até o fim do mundo…Cochrane, dois de julho de 1823, a oito milhas ao norte da Bahia”.

As viagens de Maria Graham ao Brasil tiveram uma duração e abrangência muito além dos eventos aqui abordados. Ao longo dos anos decisivos de formação do Estado e da nação brasileira, ela continuou a explorar e testemunhar os acontecimentos até 1825, contribuindo para revelar os avanços e retrocessos desse processo, de cujos espaços participou com a desenvoltura que lhe era peculiar.  Seus relatos proporcionam panoramas que revelam a complexidade de uma sociedade em constante transformação, e abrem caminhos para uma compreensão mais profunda desse período histórico, em suas múltiplas facetas.

Sylvia Porto Alegre, antropóloga e professora da Universidade Federal do Ceará

A mulher soldado que botou os portugueses para correr

Maria Quitéria - desenho de Augusto Earle

Enquanto estava na Corte, acompanhando os debates entre liberais e absolutistas, a inglesa recebeu a visita de Maria Quitéria de Jesus Medeiros, que se destacara na guerra do Recôncavo baiano por sua bravura em combate. Maria Quitéria compartilhou sua história de como fugiu de casa disfarçada em roupas masculinas, ingressou no Regimento de Artilharia de Cachoeira, de onde foi transferida para a Infantaria, até ser reconhecida pela sua bravura durante toda a guerra. Ela estava no Rio de Janeiro para receber do imperador Pedro I, o posto de alferes e a Ordem do Cruzeiro.

A estrangeira ficou encantada com a jovem inteligente e alegre, de modos delicados “apesar de iletrada”, criada no sertão do rio do Peixe, onde “as moças aprendem o uso de armas de fogo tal como seus irmãos”. Filha de um pai brasileiro e uma mãe portuguesa, Quitéria mantinha seus hábitos, como comer peixe e farinha com ovos, e gostava de fumar charutos após as refeições.

Vestia-se como soldado, adicionando um saiote “que ela me disse ter adotado da pintura de um escocês, como um uniforme militar mais feminino”. O Diário traz uma bela ilustração da alferes Maria Quitéria, feita pelo pintor Augustus Earle a pedido de Maria Graham.

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