Edição 04
Agosto
2024

João Ubaldo nas ruas, nos bares, nos ares de Itaparica

Foto: Sonia Carmo/Jornal da Pituba
Gilka Bandeira

Quem de madrugadinha passar pelo Mercado Municipal de Itaparica há de ver o escritor João Ubaldo Ribeiro à espera da chegada “das canoas e saveiros que atravessaram a noite labutando no mar”. Lá estará ele de bermuda, conversando com seus amigos peixeiros e barraqueiros antes de ir à Biblioteca Juracy Magalhães Júnior. Tudo segundo a rotina por ele mesmo descrita na carta/crônica “A biblioteca de minha terra”.

E se o curioso continuar a segui-lo, há de testemunhar com quanta felicidade ele chega à sala que a biblioteca cedeu para ele trabalhar, dando-lhe a chave e que por bom tempo se constituiu no seu gabinete de trabalho, onde traduziu “Viva o povo brasileiro” para o inglês, escreveu o “Sorriso do lagarto” e muitas crônicas. Verá ele “abrir as grandes portas laterais que davam para flores, trepadeiras e arbustos coloridos, e inspirar o ar de perfume sutil que vinha na brisa.”

Bar do Espanha, o ritual de cumprimento da sina etílica (1985)/ Foto: Sonia Carmo/Jornal da Pituba

Na sombra dos oitizeiros

Há muito, a sala deixou de ser dele, e ele se foi no triste inverno de 2014. Mas quem da água da Fonte da Bica beber ou se deixar tomar pelos ares de Itaparica, por certo o verá sair dali às 11 horas para ir ao Bar do Espanha cumprir a sina etílica. Possível também vê-lo sentado à sombra dos velhos oitizeiros do Largo da Quitanda, no restaurante do Negão, comendo moqueca de ostra sem leite de coco, ou na velha casa de arcos, onde ele nasceu.

Ali, estará debaixo da mangueira, deitado na rede a acompanhar a movimentação dos habitantes da árvore ou cochilando ninado pelo acalanto dos sabiás laranjeiras. Poderá, também, estar sentado em torno da mesa, batendo animado papo com os amigos personagens ou dando longa entrevista, entre indignações, irreverências, chistes e muitas risadas.

Sim, ainda é possível seguir os passos de João Ubaldo Ribeiro em Itaparica, porque tão significativo era o amor por ele devotado àquela terra, que sua essência ali se impregnou. Deixando de pisar as pedras das ruas, ele fundiu-se integralmente à sua terrinha, restando para sempre nela encantado a intensificar os eflúvios que fazem Itaparica ser assim misteriosa e fascinante. Fina sedução a qual JU se entregava, como revela na crônica “Cumprindo a sina”.

O filho encantado

Bom de papo e de copo, irreverência à flor de pele (1983)/ Foto: Agliberto Lima
Bom de papo e de copo, irreverência à flor de pele (1983)/ Foto: Agliberto Lima

“Conto as horas para chegar à minha santa terrinha, a Denodada Vila da Itaparica, ponta da grande ilha onde nasci […] onde minha vida, meu pensamento, meus sentimentos e até minha maneira de ver e falar mudam assim que chego, mistério que nunca entendi direito. É a terra que me prende, da qual nunca me esqueço, onde sempre me sinto bem”.

E tanto se sentia bem, tanto nunca dela se esquecia, que constituiu toda sua monumental obra em torno dessa ilha, tomando-a como inspiração, cenário e personagem. Não só nas obras, como também em toda entrevista que dava, Itaparica aparecia. Assim, Itaparica, que já era naturalmente a terra de todas as possibilidades, se tornou um recanto mítico, universalmente reconhecido. A ilha e ele viraram uma coisa só. Basta examinar a vasta bibliografia de e sobre o escritor para constatar.

Comprovação dispensável aos leitores de suas crônicas que acompanhavam as peripécias de Zecamunista, Toinho, Sabacu, Bartola, Chepa, Jacob Branco e tantos outros no Bar do Espanha, nas praças, no mercado, em toda parte da antiga Ponta das Baleias.

Uma justa mágoa

Nenhum autor contou mais a sua aldeia do que JU. Por orgulho e saudade? Por conta do fascínio peculiar? Por tudo isso junto? Mesmo escrevendo num jornal do sul do país, não deixou de louvar sua ilha.

“Quando eu fui escrever para O Globo, escrevi logo mencionando Itaparica. Aí, vieram me lembrar que eu estava escrevendo para um jornal carioca, que não botasse ´esse negócio de Itaparica, ninguém nunca ouviu falar e tal…´. Deram a mim uma orientação amigável à qual eu não dei a menor importância.  E Itaparica hoje, ao ser mencionada, não precisa que ninguém mais explique que é uma ilha. Hoje não precisa. No entanto, dizem que eu nunca fiz ´nada pela ilha´. É igual dizer que Caymmi, porque nunca fundou um asilo com o próprio nome, nunca fez nada pela Bahia”.

No final dessa declaração, JU deixa transparecer a justa mágoa que parte dos seus conterrâneos lhe provocava ao dizer que ele não fez nada por sua cidade. Nisso, chegando a refutar suas obras, acusá-lo de se aproveitar da ilha e até chamá-lo de forasteiro. Justo João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro, o mais ilustre filho da ilha, um dos grandes escritores nacionais, premiado e aclamado no mundo todo, com livros traduzidos para dezenas de idiomas.

Escrever sobre Itaparica, torná-la cenário, ou mesmo personagem, era um imperativo. “Eu sou Itaparica”, ele dizia e completava: “É minha terra… Eu não penso em me desvincular daqui, só quando morrer”.

Que tal a Casa João Ubaldo Ribeiro?

E nem assim, tendo deixado o legado que deixou. Embora tivesse vivido em outras plagas, sua identificação era o lugar onde nascera. “Só me sinto à vontade mesmo em Itaparica.”

Escrever sobre Itaparica era visceral, não uma ação planejada com vista a tirar proveitos pessoais. Na realidade, Itaparica é que tira proveito da fama, da produção e atuação do filho ilustre. E mais tiraria se houvesse um pouco de sabedoria e sensibilidade dos governantes.

A ideia é transformar a casa em um ativo centro cultural/ Foto: Rômulo Portela
A ideia é transformar a casa em um ativo centro cultural/ Foto: Rômulo Portela

JU era escritor, não era político nem empresário. Os escritores, de modo geral, são pouco práticos e têm dificuldades de lidar com burocracia. Ademais, no Brasil, um escritor não chega a ser rico, sendo um fenômeno aqueles que conseguem viver da sua arte. Portanto, não era de se esperar que JU realizasse obras públicas, fizesse doações de dinheiro, construísse asilos para velhos ou promovesse o progresso material de Itaparica.

Ser renomado escritor e ter tornado sua terra mais conhecida e admirada no mundo inteiro deveria bastar, mas ele também empreendeu ações práticas, como a criação de um Calendário de Eventos, para manter a cidade ativa o ano todo.  Não são poucos os que vão a Itaparica para conhecer esse lugar mítico revelado por JU. Daí a pergunta inevitável: por que ainda não foi criada a Casa João Ubaldo Ribeiro em Itaparica?

Na ilha das maravilhas

A biblioteca até criou o Memorial JUR, mas tão só um embrião. JU e Itaparica merecem algo mais representativo. Um museu ou a casa ou Instituto João Ubaldo poderia ser instalado na histórica casa dele, reunindo o acervo de e sobre ele, incluindo as cartas e os deliciosos e-mails-áudios que enviava aos amigos e se constituem boa fonte de pesquisa. Seria um centro cultural ativo, promovendo, sobretudo, a Semana Ubaldina e o Prêmio Literário Nacional João Ubaldo Ribeiro. Teriam livraria e lojinhas e grupo de teatro amador para leituras encenadas dos textos dele.

Assim, JU seria reverenciado ao tempo em que se dinamizaria o turismo cultural de Itaparica, proporcionando ocupação e incentivos aos jovens itaparicanos, despertando-lhes o sentimento de pertencimento, servindo à cultura nacional. Ninguém mais ousaria dizer que ele não fez nada por sua terra.

E o tal curioso que o vinha seguindo, ao dobrar a esquina do forte, já de noitinha, o viria desaparecer gradualmente como o gato de Cheshire de “Alice no País das Maravilhas,” restando apenas o seu sorriso de satisfação.

Gilka Bandeira, jornalista, escritora, pesquisadora

One Response

  1. Um texto primoroso que certamente fez JUR abrir aquele sorrisão e com a voz de cantor de tango disparar:
    “QUE MARAVILHA GILKA” !

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