Edição 04
Agosto
2024

Itamar Vieira Júnior

Acontece que sou baiano

O escritor da vida sertaneja à margem do Paraguaçu

Cynara Menezes

Mais festejado romancista da atualidade, Itamar Vieira Júnior é soteropolitano da Cidade Baixa e viveu em Cajazeiras, mas as raízes familiares o levam a Coqueiros do Paraguaçu, povoado pertencente a Maragogipe, que 200 anos atrás era uma vila localizada no epicentro da guerra contra os portugueses pela independência da Bahia.

Para ser mais exata, como é justo fazer em se tratando de um geógrafo de formação, a família de Itamar tem origem na margem oposta a Cachoeira, palco da primeira batalha vencida pelos brasileiros em junho de 1822, proclamada sede do governo e onde se organizaram as forças de resistência. Coqueiros, terra do pai do escritor, fica na margem direita do Paraguaçu, e Cachoeira, na esquerda.

Mas o fio condutor de Itamar na trilogia iniciada com Torto Arado, em 2019, não tem a ver com a história da luta pela nossa terra, e sim com a luta pela terra. Atentem para a diferença. Servidor do Incra, a carreira de Itamar Vieira Júnior está umbilicalmente ligada à questão da reforma agrária, e é possível dizer que talvez ele nem existisse para a literatura se o órgão não o tivesse transferido para o Maranhão, onde trabalhou durante três anos.

Foi lá que Itamar, um baiano da cidade grande, do litoral, teve contato de verdade com a vida do homem sertanejo, do interior. Se a Bahia lhe deu régua e compasso, o Maranhão lhe deu quilombolas, indígenas e sem-terras para serem os protagonistas de suas histórias. Eles estão presentes tanto em Torto Arado, seu estrondoso sucesso de estreia, com mais de 700 mil exemplares vendidos, quanto no segundo volume da trilogia, Salvar o Fogo, lançado agora.

Se, em Torto Arado, a trama das irmãs Bibiana e Belonísia se passa na Chapada Diamantina, em Salvar o Fogo os irmãos Moisés e Luzia vivem em Tapera do Paraguaçu, versão fictícia da Coqueiros do pai de Itamar. Todo escritor tem sua Macondo…

A luta pela terra não acabou

Há três anos, aliás, durante a pandemia, entrevistei Itamar e comentei com ele minha impressão de que Torto Arado é um encontro entre Vidas Secas e Cem Anos de Solidão, comentário que muito lhe agradou e com o qual concordou inteiramente – o escritor, inclusive, homenageia no romance a cachorrinha Baleia do clássico de Graciliano Ramos. Quem leu, sabe.

Com Salvar o Fogo, Itamar se firma como um autor que retoma a linhagem dos escritores da chamada literatura “regionalista”, como o próprio Graciliano, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e o conterrâneo Jorge Amado.

Há quanto tempo não víamos romances assim? Nas últimas décadas, os grandes sucessos literários brasileiros foram urbanos, traziam questões relativas à vida nas metrópoles. Mesmo as obras que tinham um pano de fundo social, como têm os livros de Itamar, eram ambientadas nas periferias das grandes cidades, não no interior. São lutas distintas as que travam os desvalidos de uma metrópole e os de um lugarejo perdido nos confins do mundo.

Torto Arado e Salvar o Fogo trazem homens e mulheres literalmente descalços, pessoas rudes, até secas no trato, em um ambiente tão hostil que é difícil traçar uma data para o período que retratam. O primeiro livro se passava no final da década de 1960 e, o segundo, entre os anos 1990 e 2000, mas quase não se nota a diferença em termos temporais.

O cenário desolador é o mesmo, as dificuldades são semelhantes, as desigualdades, os privilégios e as injustiças persistem, a luta pela terra não acabou. Em pleno século 21, famílias de lavradores sem-terra continuam a ser tratadas e reprimidas como marginais pelos coronéis do agronegócio e da política. Não há nada de inventado nisso.

“A ira do corpo se torna mais violenta em noite de lua cheia.

Ela já não conseguia se recordar das coisas que tinha para fazer no dia a dia. Também não soube dizer a si mesma como e quando havia se deitado exausta na esteira de palha e nem em que momento desfez – num acesso de fúria – a grossa trança que domava seu cabelo crespo e negro refletindo o brilho da luz de um candeeiro. Depois, ela imaginou que os fios do seu cabelo se tornavam raízes encontrando o chão do quarto, e talvez tudo isso tenha se passado antes de uma dor violenta lhe atravessar o quadril. Ou foi antes de sua visão ficar turva. Ou um pouco antes de o suor escorrer de seu rosto e de suas costas, como uma fonte de água morna. Foi ao mesmo tempo em que sentiu uma incômoda vontade de urinar”.

(Trecho do começo do novo livro, Salvar o Fogo)

Tem mangue, tem marisco

É curioso que o mesmo desconhecimento da elite culta do país, majoritariamente sudestina, sobre estes homens e mulheres do interior do Nordeste esquecidos pela literatura recente, que provocou fascínio e acarretou elogios e prêmios a Itamar como “novidades” de Torto Arado, também seja responsável por certa incompreensão e estranhamento por parte da crítica.

Tanto no primeiro quanto no segundo livro, o escritor coloca na boca de seus personagens humildes discursos articulados em defesa do direito à terra. O que soa forçado, proselitista, “maniqueísta”, aos ouvidos de alguns, na verdade se trata de uma assumida opção narrativa do escritor. Ele faz literatura engajada, sim, e qual o problema? 

A trilogia de Itamar Vieira Júnior é sertaneja e fluvial. O rio Paraguaçu também é personagem de seus romances – Moisés, o menino que conduz o novo livro, não tem nome bíblico por acaso. O Paraguaçu, maior rio genuinamente baiano, nasce na Chapada Diamantina, cenário de Torto Arado, e desemboca no Recôncavo, território de Salvar o Fogo.

Mas o mar, pertinho dali, está ausente de ambos os livros. Em Salvar o Fogo tem mangue, tem marisco, mas não tem mar. Estará presente no terceiro volume? Nas entrevistas que tem dado à imprensa, o escritor faz suspense, não dá pistas sobre o que virá. Se for seguir o curso do rio Paraguaçu, desaguará na Baía de Todos-os- Santos, assim como a luta pela Independência da Bahia há 200 anos se encerrou ali.

Há algo mais em comum entre a literatura de Itamar Vieira Júnior e o 2 de Julho além do Paraguaçu: as mulheres fortes como protagonistas, reflexo das mulheres fortes que povoaram a infância do escritor. “Perto delas, os homens eram personagens pálidos. Apesar do machismo, eram elas que dominavam”, disse outro dia Itamar sobre as mulheres de sua família: mãe, avó, tias. As Luzias, Belonísias, Bibianas, Marias Caboclas, as Joanas Angélicas e as Marias Quitérias… Mulheres baianas retadas.

Cynara Menezes, jornalista, editora do site Socialista Morena

3 Responses

  1. Cynara sempre com lindos textos para nos encher de alegria e curiosidade. E, se tratando de Itamar Vieria Junior, o gostinho que fica é sempre de quero mais! Amei! Torto Arado bateu fundo na alma. Salvar o Fogo parece que promete o mesmo. Louca pra ler! Sucesso ao escritor e aos seus belos livros de histórias profundas do nosso Brasil! Que a sua literatura abra caminhos para avançarmos mais e mais na pauta PELA TERRA! Beijos!

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