Edição 04
Agosto
2024

Assim falou o Xeique Abdula

Ilustração: Paulo Setúbal

Crônica

Braulio Tavares

Toda reportagem é um salto no escuro, costumava dizer Mano Sampaio, lobo veterano da redação do antigo Jornal da Bahia, onde ele pontificava, como um Yoda tabagista, na sua velha escrivaninha rabiscada, fumando como uma locomotiva, correndo a vista pelas páginas dos jornais e recortando matérias com uma régua. Tinha o dobro da minha idade e cem vezes o meu discernimento, de modo que eu, ainda tímido e foca, chegava junto durante os papos da cantina para recolher alguns caraminguás de experiência alheia.

Reportagem (ele insistia) é como guerra, que a gente sabe como começa e nunca prevê como termina. E, voltando à imagem do salto no escuro, concluía: apurar e escrever são o salto; o chão é o dia seguinte, quando o jornal é pendurado na banca.

A cantina era uma saleta claustrofóbica, luz fluorescente, mesinha encardida com garrafa térmica e copos de plástico, galão de água mineral. Não havia espaço para sentar, e cabiam no máximo quatro pessoas em pé, de modo que a própria cantina era uma lição de economia narrativa: seja breve, seja incisivo, e depois volte ao trabalho.

Mano Sampaio nos atraía para ali como um mestre Zen que faz os discípulos subirem uma ladeira. E eu não esqueço a navalha de seus aforismos, ainda mais quando lembro de certos episódios.

Como a passagem do xeique árabe por Salvador.

Eu era galo de briga e queria mostrar serviço. Certa manhã, o editor encerrou um telefonema e perguntou: “Alguém aí fala francês?” Eu levantei o braço antes de entender a pergunta. Ele explicou que um navio árabe estava atracado no porto, e alguém estava cobrando uma entrevista com o Xeique Abdula, figurinha carimbada da OPEP.

O gancho da matéria era o preço da gasolina, coisa que nunca me interessou, visto que não sei dirigir e fiz promessa de nunca ter carro, mas tudo que eu sonhava era uma matéria assinada, para mostrar aos meus pais. Não esqueçam que a gente estava nos anos 1970, e os árabes tinham feito o mundo de refém com a alta do petróleo.

Partimos para o porto, eu e o fotógrafo Dirceuzinho, magrelo, sardento; e eu ia confiante. Tinha feito dois semestres de Aliança Francesa. Se você me apresentasse a Catherine Deneuve, podia deixar o resto comigo, eu me virava.

Jevê parler isso, la reportage aquilo, nuzavon marquê ojurduí…  Consegui fazer-me entender pelos marinheiros. Todos tuaregues, parecidos com Omar Sharif, e me olhavam como se avaliassem meu preço num mercado de escravos na Tripolitânia. Eu e Dirceuzinho fomos levados a uma sala, depois a outra, com ar condicionado, letreiros em francês e em árabe. Fomos revistados, com profissionalismo e indiferença. E finalmente fomos conduzidos à sala de recepção, que era maior do que a redação do jornal.

Ali, nos esperava o xeique, num uniforme branco com galões dourados, um quépi imponente, tez de oliva, bigode de azeviche, perna cruzada, olhar desdenhoso para minha roupa e para a câmera de Dirceuzinho, que ele deve ter achado furreca.

“Quésque vous pensê de la crise internacional?…” O xeique Abdula respondia olhando para o teto, como se recitasse uma lição. Somente nessa hora, caderneta e Bic em punho, eu me toquei que não me cabia apenas fazer perguntas em francês, mas copiar as respostas em francês que o consagrado estava me concedendo. Copio o que ele disse? Ou entendo e boto logo em português? O suor pingava, apesar do ar refrigerado. Por sorte, ele falava pausado, parecia até estar saboreando aquele momento.

Perguntei sobre o preço do barril, a tensão Leste-Oeste, a contribuição árabe à etnia brasileira… Fui me soltando, com a ajuda de muita mímica e de um pouco de inglês estropiado. Ele suportou com paciência. Durante o tempo inteiro, três marmanjos com roupa de parada militar permaneciam de pé, junto à parede, braços cruzados diante do corpo, sabre à cintura. Pra ser um filme, só faltava Catherine Deneuve.

A certa altura, ele se levantou, dando a conversa por encerrada. Voltamos a toda para a redação, cobertos de glória, mas ninguém nos deu atenção, porque havia outras pautas. Naquele dia, a Bahia tinha parado por causa de um ato público em frente à Reitoria, no Canela, que coagulou todo o trânsito até a Praça da Sé. E tinha morrido um figurão qualquer, tinha caído um técnico do Vitória… Enfim, o xeique era fichinha diante do noticiário local; a primeira página estava mais atulhada do que elevador de mudança.

Ganhamos chamada, e matéria interna de três colunas, com uma foto do xeique e alguns retalhos sobreviventes da entrevista gigantesca que redigi, preenchendo, com imaginação e ousadia, os meus buracos de monoglota. Consegui, inclusive, contrabandear uma resposta apócrifa do beduíno ilustre; perguntei-lhe como seu povo via o Brasil, e consegui enxertar comentários elogiosos não só à música e ao futebol, mas também ao Cinema Novo brasileiro.

E aí voltamos a Mano Sampaio e seus ensinamentos. O salto no escuro é quando a gente sai da redação; o chão só chega no dia seguinte. Meu primeiro triunfo internacional foi tido entre os coleguinhas como um feijão-com-arroz corriqueiro, até que alguém aterrissou na mesa do redator trazendo nas mãos minha reportagem e uma revista colorida qualquer. Ali, o Xeique Abdula era um ancião de seus setenta anos, barba branca, turbante, sobrancelhas hirsutas, nariz étnico. Muito diferente do meu xeique, o que fez o redator ir ao telefone em busca de explicações.

Minutos depois, ficamos sabendo. Eu tinha entrevistado o assessor de imprensa do Capitão do navio, personagem encarregado de cumprir agendas desse tipo. E a única circunstância atenuante a meu favor é que o indigitado chamava-se também Abdula, nome que lá na terra deles deve estar no câmbio de um Antonio ou de um Francisco em terra nossa.

Sim, todo salto é ambicioso, e todo chão é duro.  Feliz de quem consegue catar os cacos, sacudir a poeira, e seguir em frente. Mano Sampaio passou um mês tapando a boca e rindo com os ombros quando esbarrava comigo no elevador.

Braulio Tavares, poeta e compositor

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