Edição 04
Agosto
2024

Chegança de Saubara

Rosildo do Rosário, à frente da Chegança Fragata Brasileira/Foto: Raimundo Jerfeson do Rosário

Mário Paulista

Viva São Domingos e a nau que navegamos!

Seria possível ver o som com os olhos mesmo? Assistir seu movimento? No dia 4 de agosto, quem estiver em Saubara – 107 km de Salvador – nos festejos ao padroeiro São Domingos, certamente responderá que sim. Este ano, a cidade realiza o 11º Encontro de Cheganças da Bahia.

O possante coral de vozes dos marujos em suas marchas e rezingas, balançadas em rufos e cascudos nos pandeiros, ecoa na ginga dos marinheiros que, em finos trajes alvos do ofício, encantam nau que bamboleia dramática, passeando as ruas da cidade.

A maresia que vem da costa embala o espetáculo dos cheganceiros e cheganceiras; as melodias e versos no vozerio entoado parecem buscar camadas profundas do ser, no tempo e espaço:

Moças baianas cheguem à janela

Venham ver os marujos, ora meu bem,

Que vão pra guerra

As lembranças dos mais velhos projetam pelo menos três gerações da tradição no lugar, em cujo ritual arde candeia de recordações a se perder na noite dos tempos, de fé, maré e guerra; crepitam nas cheganças memórias que vão das clássicas lutas entre mouros e cristãos até as lutas de Independência na Bahia.

Chegança Barca Nova Feminina, charme e tradição/Foto: Carol Garcia
Chegança Barca Nova Feminina, charme e tradição/Foto: Carol Garcia

Dizemos cheganças no plural porque só a comunidade de Saubara abriga três grupos: a Chegança de Mouros Barca Nova – masculina e feminina – e a Chegança dos Marujos Fragata Brasileira. Desta última, lembra o professor e “marujo” Rosildo do Rosário:

“Eu começo no grupo em 1978, com três anos de idade. Já são 46 anos de participação no grupo, um histórico de existência muito próximo da história da Independência do Brasil na Bahia, um grupo quase bicentenário também, porque as memórias construídas são deste momento histórico. Sou a terceira geração da minha família que participa no grupo”.

Glorioso (São Domingos)

Consolai, meu padroeiro

Aceitai (a romaria)

Desse pobre marinheiro

O momento de seu ingresso no grupo remonta à reorganização, após dezesseis longos anos de desarticulação. Ralph Waddey, pesquisador estadunidense que em 1980 assistia impressionado ao orgânico resgate empreendido pelos antigos participantes, assim descrevia:

“A Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, após ter sumido durante dezesseis anos das ruas da sua cidade, Saubara (distrito de Santo Amaro da Purificação), começou a sair de novo em 1978, reconstituída por aqueles poucos integrantes da antiga marujada que estão ainda entre nós e pelos descendentes destes ‘antigos’.

Foram principalmente as mulheres dos marujos – esposas, tias, primas, irmãs e mães – que fizeram a pesquisa básica que levantou os velhos textos e melodias (pesquisa que é pra causar inveja a qualquer bom etnólogo) e colocou esta ‘Fragata Brasileira’ de novo na rua.”

Glorioso São Domingos

Traz a frente para o mar

Pra socorrer todo aquele

Que por seu nome chamar

Barca Nova Masculina, orgulho e história não faltam/Foto: Reinilson do Rosário

E os por quês? Explica novamente Rosildo do Rosário, transbordando poesia que é parte do jeito de ser do lugar: “A Chegança é expressão viva das tradições e sua mistura com o sagrado. Compromisso de fé em festa. Rituais ligados a passagem do tempo, da própria vida. Os jogos, folguedos. Por mais que se busque os porquês, é difícil encontrar respostas diretas, explicações concatenadas. São impulsos de raízes profundas, que sequer precisam fazer parte de um mundo controlado, decifrado pelos mecanismos da razão.”

Na comunidade, a pioneira é a Chegança de Mouros Barca Nova. Desde 1990, o grupo conta, também, com a Chegança feminina. Como o nome indica, na Chegança de Mouros a peleja encenada é a histórica batalha entre cruz e lua crescente, que a liderança do grupo Edmundo Passos de Jesus, seu Mouro, conta se dar por acidental invasão portuguesa ao mar da Turquia. Já na Chegança de Marujos, os conflitos – rezingas – se dão entre os embarcados na multiplicidade de suas ocupações marítimas – gajeiros, calafates, contramestre, comandante etc. –, e assumem a louvação dos feitos dos marinheiros que protegeram a Baía de Todos-os-Santos dos invasores na Guerra de Independência.

Vamos companheiros

Vamos lá chegar

Leva essa bandeira

Lá em Pirajá

Era essa pujança cultural que também animava o professor, historiador e escritor Nelson de Araújo quando exaltava o lugar nos seus “Pequenos Mundos”:

“Saubara pode ser considerada, em muitos aspectos, o coração do Recôncavo”. Pedimos licença, aqui, para aproveitar a metáfora e reforçar a vocação cardíaca da cidade: é que nela hoje podemos encontrar não só os já mencionados grupos, mas cheganças e marujadas de toda a Bahia e até de outros estados.

É que reconhecendo a amplitude cronológica e geográfica de sua tradição, os marujos de Saubara se articularam com outros grupos de outras comunidades e, desde 2013, realizam o Encontro de Cheganças da Bahia.

No compasso do pandeiro, esperto e sambadeiro/Foto: Reinilson do Rosário
No compasso do pandeiro, esperto e sambadeiro/Foto: Reinilson do Rosário

Em 2016, reforçando este papel de vanguarda saubarense, o grupo Fragata Brasileira fez sua primeira viagem internacional, cruzando o Atlântico e participando de uma série de atividades em Lisboa, Portugal. Poética e esteticamente carregada de referências portuguesas, a chegança teve oportunidade de realizar uma série de trocas em escolas, associações do país, dividindo e construindo conhecimento sobre sua própria arte.

A peleja encenada, batalha entre a cruz e a lua crescente/Foto: Reinilson do Rosário
A peleja encenada, batalha entre a cruz e a lua crescente/Foto: Reinilson do Rosário

Além de perfis nas redes sociais, a Associação Chegança dos Marujos Fragata Brasileira conta com site (http://chegancasdabahia.org.br), onde podemos conferir mapa com contatos dos grupos ativos na Bahia, fotos de edições do Encontro de Cheganças, baixar publicações – entre as quais o catálogo “Êta, Marujada – A arte de soltar as amarras”, com textos informativos, letras de músicas, fotos e entrevistas, algumas das quais utilizamos aqui neste artigo.

Mário Paulista, historiador e músico

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