Jary Cardoso (texto)
Xando Pereira (fotos)
Tradicional e bissecular, patrimônio imaterial da Bahia. Agosto é um mês especial para Cachoeira, cidade histórica do Recôncavo baiano, 118 km da capital. Muita gente, até de fora do país, chega para a Festa da Boa Morte, criada há mais de 200 anos pela irmandade leiga de mulheres negras.
É quando cortejos e procissões que misturam catolicismo e candomblé se revezam com o samba de roda nas ruas e praças. E os visitantes podem se deliciar com as comidas de orixás e a maniçoba de origem indígena, tendo como paisagem deslumbrante a arquitetura colonial e o rio Paraguaçu.
Diante do mistério da morte e da tristeza pela
perda de pessoas queridas, exaltam-se a vida e
a Assunção de Maria aos Céus.
“A Virgem Maria, Iemanjá e Mani,
a raiz sagrada dos indígenas,
se misturaram e a cada dia
se misturam mais,
a cultura brasileira, meus ilustres!”
(Jorge Amado, manifesto publicado em 27.1.1995, na Folhade S. Paulo, em defesa do patrimônio em ruínas da Irmandadeda Boa Morte)
Rainhas negras nas ruas de Cachoeira
A programação oficial começa dia 13 de agosto, mas o primeiro evento público acontece algum tempo antes.
No dia 31 de julho, “uma comitiva das irmãs, vesti
das a caráter, de torço, com batas brancas e saias ro
dadas da mesma cor, se desloca até a casa da prove
dora da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte,
com o intuito de buscar a imagem da Virgem, uma
relíquia da instituição, seu maior patrimônio, datada
do século XVIII” – descreve Gustavo Falcón, doutor
em História Social e morador de Cachoeira.
Após as orações e ritos católicos no interior da casa, a comitiva sai de braços dados conduzindo o esquife da dormição de Maria em direção à Capela d’Ajuda, e canta: “Abençoe esta missão/ Virgem Mãe, Senhora Nossa/ Com a sua proteção/ Senhora da Boa Morte”. Adeptos do candomblé acompanham o cortejo, atirando pipocas e arroz sobre as irmãs, em clima de muita emoção e aroma de alfazema.
No primeiro domingo do mês, realiza-se a eleição da comissão para a festa do ano seguinte. Neste dia, são escolhidas a procuradora-geral, a provedora, a tesoureira e a escrivã. A votação é feita através da contagem de grãos de feijão e milho ofertados a cada uma das irmãs, simbolizando a rejeição ou aceitação de seu nome pelas outras companheiras.
O historiador cachoeirense Luiz Cláudio Nascimento, estudioso do sincretismo praticado pela Irmandade, conta que a partir de 12 de agosto as confreiras “ficam sete dias em obrigação, interditadas de ingerir
alguns tipos de alimentos, principalmente aqueles preparados com azeite de dendê e quiabo, considerados alimentos tabus. As casadas ficam proibidas de manter relações dias antes do início do festejo”
Andar com fé e energia
13 de agosto – Nesse dia, devotado à Senhora Morta e o primeiro do calendário católico das comemorações, as integrantes da Irmandade se confessam na sede antes de sair para rua. Segurando um pedestal com vela, rumam até a Igreja d’Ajuda para rezar e incensar o ambiente em torno do esquife da dormição.
18h – Na Capela da Irmandade é celebrada missa em memória das irmãs falecidas. Em procissão, conduzem o andor pelas principais ruas de Cachoeira.
O traje de baiana é todo branco, desde o ojá de cabeça, feito de lenços que encobrem os cabelos, até as chinelas de couro, o que no candomblé significa luto. Xale de pano da costa cobre um dos ombros e o camisu em richelieu indica posição elevada na hierarquia da religião de matriz africana.
20h – De volta à sede, há uma ceia branca, privativa das irmãs e poucos convidados. No cardápio, peixe,pão e vinho.
22h – Elas fazem sentinela junto à imagem de Nossa Senhora da Boa Morte.
14 de agosto – Dia do enterro simbólico.
19h – Na sede, missa em louvor a Nossa Senhora e ahomilia trata da sua morte anunciada. “Maria Mãe de Deus rogai por nós, Rainha Imaculada rogai por nós” – as irmãs cantam para a imagem incensada pelo padre. Vestidas a rigor em preto e branco, saia plissada, blusa de manga, lenço na cintura, e acompanhadas por de votos e uma filarmônica, retornam às ruas com a imagem da Virgem. Em procissão à luz de velas, entoam “No céu/ No céu/ Com minha Mãe estarei”. No final, recolhem Nossa Senhora à capela da Irmandade.
15 de agosto – No último dia, cultua-se o mistério da Assunção, quando a Senhora Morta dá lugar a Nossa Senhora da Glória, sincretizada com Oxum.
5h – Alvorada com fogos de artifício.
10h – Um cortejo parte da sede em direção à Igreja Matriz. Sob o aroma do incenso, missa solene res salta a Assunção. Com a roupa de gala, “enriquecida da cor vermelha do pano da costa, significando alegria pelo vivo da cor, além de referência às cores de Omolu (vermelho e preto) e Iansã (vermelho), as irmãs portam muitas joias e balangandãs, manifesta alusão a Oxum”, observa Falcón. “Muito ouro e prata, em tudo lembrando o fausto e a pompa das negras do ‘partido alto’ dos tempos da escravidão”, acrescenta Nascimento.
11h – Em momento de forte emoção, ao sair da Matriz as irmãs jogam flores sobre a imagem altiva de Nossa Senhora da Glória e os fiéis aplaudem e dão vivas. Assim começa a longa e derradeira procissão que fecha a programação religiosa.
13h – A Irmandade serve feijoada a autoridades e convidados. Ainda na sede, acontece a cerimônia de posse da comissão organizadora da festa de 2025.
17h – Samba de roda no Largo da Ajuda comemora a Assunção de Maria.
16 de agosto
12h – A Irmandade serve um cozido à comunidade.
18h – Samba de roda no Largo da Ajuda.
17 de agosto
18h – Caruru, seguido de samba de roda e encerramento da festa.
Altivas e libertas
A Irmandade da Boa Morte existe em Cachoeira desde o começo do século XIX. Altivas e libertas, mulheres jejes-nagôs fugiram da perseguição da Igreja Católica e dos senhores do poder da capital.
Na literatura, não há uma data precisa sobre o surgimento da Irmandade em Cachoeira. Os primeiros sinais do grupo na Bahia são de 1810, em Salvador, a partir de escravas vindas da África.
Membros da Irmandade de Negros da Igreja da Barroquinha e do candomblé dedicado a Xangô – que funcionava nos fundos da igreja – também fugiram para o Recôncavo, onde fundaram várias irmandades que, com
o tempo, foram desaparecendo. Só a da Boa Morte de Cachoeira resistiu, com seus ensinamentos, preceitos, rituais e obrigações repassados oralmente de mãe para filha.
A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte é uma confraria religiosa afro-católica que, na sua origem, e por muito tempo, foi responsável pela alforria de inúmeros
escravos. Neste século, o grupo continua com sua missão social, agora dedicada principalmente à educação.
A história da confraria religiosa da Boa Morte se confunde com a maciça importação de escravos da África para o Recôncavo canavieiro da Bahia, em particular para a cidade de Cachoeira, a segunda em importância econômica na Capitania da Bahia durante três séculos.
O fato de ser constituída apenas por mulheres negras, numa sociedade patriarcal e marcada por forte contraste racial e étnico, emprestou a esta manifestação afro-católica, como destacam alguns autores, características únicas no universo de manifestações culturais na Bahia, seja pelo que expressa do catolicismo barroco brasileiro, de presença forte nas procissões de ruas, com a incorporação dos princípios e rituais religiosos aos festejos profanos pontuados de muito samba e comida.
Jary Cardoso, jornalista e escritor
SERVIÇOS
COMO CHEGAR
Cachoeira fica no Recôncavo, a 118 km de Salvador. Pela BR-324 (Salvador–Feira) são 60 km, até o entroncamento da BA-026; daí mais 12 km até Santo Amaro da Purificação e 39 km, pela mesma rodovia, até Cachoeira. A empresa Santana oferece linhas de ônibus diárias. Estação Rodoviária de Cachoeira, fone (75)3425-1214.
ONDE FICAR
Pousada do Convento, praça da Aclamação, centro. Fone (75)3425-1716. Diária: R$250, quarto para dois. * Pousada Treze de Março, rua Cunegundes Barreto, 9, centro. Fone (75)3425-5124. Diária: R$216, quarto para dois.*
ONDE COMER
Restaurante Pai Thomaz. Cardápio diversificado, serve maniçoba. Rua 25 de Junho, 12, centro. Fone (75)3425-3182. * Restaurante Maktub. Buffet de comida caseira. Rua Dr. João Vieira Lopes, 29, centro. Fone (75)99902-0882.* Hórus Bistrô Egípcio. Comida mediterrânea, do Oriente Médio e pratos veganos. Rua Monsenhor Tapiranga, 5, centro. Fone (71)99210-1342.