MEDALHAS À VISTA!
Paulo Leandro
Os Jogos Olímpicos de Paris devem confirmar vocação baiana para as medalhas. Isaquias Queiroz, na canoagem, Ana Marcela, na maratona aquática, e a revelação das piscinas, Guilherme Caribé, estão entre os favoritos nas águas. São alguns dos destaques da delegação brasileira em Paris. Isaquias foi porta-bandeira do Brasil.
A Bahia sempre se deu bem no boxe, com Robson Conceição (2016, Rio de Janeiro), o primeiro ouro olímpico do boxe brasileiro, e Hebert Conceição (2020, Tóquio), ambos crias do formador de pugilistas, Luiz Dórea, ex-lutador, técnico mundialmente conceituado no mundo olímpico.
Os baianos têm tido um desempenho olímpico compatível com a sua grandeza. Se a Bahia fosse um país, estaria à frente de outras 142 nações no ranking de medalhas olímpicas.
Esta bonita história começou em Londres em 1948, quando Nilton Pacheco conquistou o bronze com a Seleção Brasileira de Basquete; Bebeto ganhou a prata em 1988 no futebol. Nos Jogos de 1996, brilharam no futebol o goleirão Dida, de Irará, e o zagueiro Aldair, de Ilhéus.
No ano 2000, o mundo teve de se curvar ao braço forte e veloz de Edvaldo Bala Valério, no revezamento 4×100 metros, o primeiro preto do Brasil a ganhar na natação.
No século XX, teve a prata no futebol feminino de Formiga e Elaine em 2004 e 2008; em Londres, 2012, Adriana Araújo foi a primeira “boxer” brasileira a ganhar uma medalha, de bronze no pugilismo.
Nesta reportagem, vamos conhecer aspectos curiosos e marcantes da história deste trio de favoritos em 2024 – Ana Marcela, Isaquias Queiroz e Guilherme Caribé. Vamos também à Academia Champion, do supercampeão Luiz Dórea, o mais vitorioso formador de campeões de boxe do Brasil.
Isaquias, o herói indígena
Os ancestrais de Isaquias Queiroz gostavam tanto de andar de barquinho a ponto de chamar o lugar onde moravam de Ubá-y-taba: “aldeia do rio e da canoa pequena” em tupiniquim, povo originário do município de Ubaitaba, 377 km ao Sul da capital Salvador.
As conquistas do recordista em medalhas olímpicas em uma só edição dos Jogos honram este legado difícil de comprovar, cientificamente, mas há fortes indícios de o ubaitabense trazer no sangue a inclinação para manejar a pá.
Resta aos orgulhosos sudestinos e sulistas engolirem a seco a próxima provável marca histórica do vencedor: em Paris, será o atleta do Brasil com mais pódios em toda a história dos Jogos Olímpicos da era moderna.
E pensar que o dono da coleção de medalhas capaz de vergar o pescoço perdeu o rim, ainda criança, e, em 2018, ficou também sem seu treinador, o espanhol Jesús Morlan.
Sem pai desde dois aninhos, a mãe Dilma se virava como servente, deixando nove filhos trancados: a vizinha olhava a prole, e numa dessas Isaquías esbarrou na panela de água quente e queimou grande parte do corpo mirrado.
A cada dificuldade, o canoísta foi ficando mais forte e ligeiro, como se tivesse lido o grande líder dos vitalistas, o pensador alemão Friedrich Nietzsche, no clássico O crepúsculo dos ídolos: “O que não mata, nos fortalece”.
Energia chama energia
Seguindo essa rota de “energia chamando energia”, baixando seus tempos competição após competição, o representante tupiniquim já tem 13 medalhas em mundiais de canoagem de velocidade, mais da metade delas de ouro.
Nos Jogos do Rio de Janeiro, em 2016, ganhou três medalhas, duas de prata e uma de bronze, juntando o ouro em Tóquio-2021, ao consolidar fama mundial, menino nascido e crescido na aprazível cidadezinha de 20 mil almas.
O melhor canoísta brasileiro, nascido em 3 de janeiro de 1994, hoje integrante do Clube de Regatas do Flamengo, muito querido em Ubaitaba, está prestes a ultrapassar os velejadores Torben Grael e Robert Scheidt, cinco medalhas.
Ao imaginar suas façanhas em Paris, o herói indígena tem sido “realista” e fiel a seu ambiente aquático: “Não vou ter os pés no chão. Meu objetivo é ganhar dois ouros, não quero nem pensar nem em prata nem em bronze”.
Ana Marcela, a menina que viu o futuro
Eu fui convidado para fundar um novo suplemento esportivo no jornal A Tarde, em 2003, quando o então diretor de redação, Ricardo Noblat, baixou a ordem, em decibéis um pouco acima da média e olhos revirando de vibração:
– Vamos estrear o A Tarde Esporte Clube com uma bela reportagem sobre três mulheres desconhecidas, mas dedicadas ao esporte, uma criança, uma jovem e uma já mais madura. Você me entendeu bem, não é? Então, se vire.
Recebi a determinação e corri atrás, solicitando a um de meus melhores repórteres premiados, José Raimundo Silveira, cumprir a pauta mais parecendo uma “batata quente”, pois escapava aos trâmites dos manuais.
Pois não é que o danado acertou em cheio? Ou melhor: o incentivo a Ana Marcela de Jesus, ainda com 11 anos, ao estampar a capa do novo suplemento, pode ter servido de primeiro incentivo da mídia em sua carreira.
Silveira percebeu a injustiça praticada pelos nadadores adultos e machos, porque Ana Marcela “ainda era uma garotinha” (toca Cássia Eller), e ganhava dos grandões, mas não recebia os prêmios “porque não podia”, diziam eles.
Nadando no mar de ouro
Foi assim na Travessia Gamboa-Morro de São Paulo, noticiada em um dos textos de apoio da reportagem intitulada “Elas querem brilhar”. Em uma frase de rara e preciosa clarividência para uma nadadora criança, Ana previu:
– No futuro, virão os prêmios pelo meu esforço.
E vieram mesmo! Ana Marcela ganhou sete ouros, duas pratas e dois bronzes em mundiais e é a atual campeã olímpica dos 10 quilômetros em águas abertas, também chamada de maratonas aquáticas.
Podia ter desenvolvido carreira em piscinas, se piscinas houvesse em Salvador à época, controlada por uma elite capaz da estupidez de reduzir o tamanho dos equipamentos “para não atrair mistura” em competições oficiais.
Yemanjá, no entanto, tem seus mistérios e desígnios, oferecendo a Ana Marcela a maior de todas as piscinas, feita das ondas do mar sagrado, e ela entendeu a mensagem, tornando-se especialista em maratonas aquáticas.
Integrante da população LGBTQUIA+ (“a namorada tem namorada”…), Ana jamais teve apoio proporcional a seu talento em sua própria terra, mas venceu o desdém nativo ao conquistar patrocínios e apoio de empresas de fora.
A menina revelada numa pauta maluca, mas de uma inteligência rara e hoje extinta na imprensa esportiva, a menina que derrotou a “macharada” idiota e a indiferença de seu povo, hoje nada num mar de medalhas. Viu aí?
Guilherme, o caçula das braçadas
Raríssimo é o papai babão a contar os dias para torcer por seu filho nadador fortemente cotado para conquistar uma medalha nos Jogos Olímpicos de Paris, depois de ter reduzido o tempo do lendário Cesar Cielo.
Pois Mateus Caribé desfruta desta avantajada condição de ter procriado Guilherme, detentor de 21seg89 nos 50 metros livres e de 47seg88 nos 100, velocista mais rápido da América do Sul.
“Gui é hoje o velocista mais rápido da América do Sul, mora no campus da Universidade do Tenesse, nos Estados Unidos, onde estuda ‘Cineseologia do esporte’, ciência dedicada aos movimentos do corpo humano”, afirma papai Mateus.
Embora o sobrenome Caribé esteja vinculado à arte marcial do karatê, o peixinho vem multiplicando as habilidades da família, desde os dois anos de idade, quando ouviu as primeiras orientações do pai, seu professor de natação.
A primeira conquista, a gente não esquece
A primeira conquista, seu Mateus lembra como se fosse hoje, aconteceu na extinta piscina da Vila Olímpica da Bahia, quando Guilherme ainda tinha apenas sete anos e ganhou a primeira medalhinha.
O esforço da família para fazer de Guilherme um nadador olímpico foi recompensado, pois houve tempo de dureza, no qual era preciso fazer “vaquinha”, “feijoada” e “miaeiro” para juntar o dinheiro dos suplementos.
Mas houve também uma necessidade de intervenção de um amigo dos Caribé, também professor de natação, Fábio Ding, conhecido como Fabão, ao persuadir o talentoso pupilo a voltar a nadar depois de ter enjoado da água da piscina para tentar o vôlei.
“Foi num churrasquinho com os familiares que conversamos, e ele aceitou voltar, ainda na categoria Petiz, junto com o amigo Manoelzinho, que também havia desistido”, lembra Fábio.
Agora, Fábio Ding amplia a torcida por Guilherme, acompanhando de Salvador; já papai Mateus vai com a esposa Marja, a sogra Márcia e a filha Sophia, visando aplaudir nossa revelação até a grande final.
LUIZ DÓREA
O formador de campeões
Luiz Dórea, o criador da poderosa Academia Champion (Boxe e MMA), na Ladeira do Ipiranga, 85, bairro de Cidade Nova, Salvador, foi campeão mundial junior de boxe profissional como atleta, técnico campeão mundial de boxe profissional, técnico campeão olímpico e técnico campeão mundial de atletas do UFC.
Com a Academia Champion, já ganhou duas medalhas de ouro, uma de prata, uma de bronze, além de ter preparado Acelino Popó Freitas para o estrelato, e, mais recentemente, Robson Conceição, campeões do mundo.
Por que a Champion existe e resiste em Salvador, num bairro popular?
“Bairros habitados por pessoas simples existem em todas as cidades do mundo, mas aqui acredito que nossa metodologia de trabalho e acolhimento vêm fazendo a diferença”, arrisca a primeira hipótese, o professor Luiz Dórea, o mestre de quatro gerações, o administrador da academia de maior destaque olímpico entre todos os mais de 200 países do globo.
Para quem prefere cultuar o êxtase místico, propriedade do deus Dioniso, só resta investir na imaginação, sem chance de representar em palavras para definir como uma ladeira de Salvador pode levar ao Olimpo o boxe nativo.
Aos 59 anos, Luiz Dórea tomou um bom gole d’água antes de retomar os treinos com seus alunos, numa tarde qualquer de seu cotidiano de lutas, para lembrar alguns dos principais aspectos capazes de desenhar uma “mitologia” do ringue.
No ringue, a luta é outra
Tudo começou com o próprio Dórea, ao arrebatar o cinturão mundial júnior, com 22 anos, colecionando 80 vitórias, ao abrir seu próprio caminho como professor precoce. A trajetória de formador de atletas olímpicos tem início com Joilson Santana, um servidor do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, entristecido com a perda de sua noiva, em um acidente de motocicleta. A dor e o sofrimento impulsionaram a carreira do funcionário público a ponto de chegar a Seul, para os Jogos Olímpicos de 1988, na pioneira participação da Champion na festa maior do desporto mundial.
Ocorre, então, uma nova fase da carreira do mestre: treinar a seleção olímpica brasileira em Atenas-2004 e Pequim-2008. Em 2012, a Cidade Nova voltou a fazer história na primeira vez de o patriarcado tomar um murraço das mulheres e cair duro. Érica Matos, esposa de Robson Conceição, e Adriana Araújo, medalha de bronze, foram as pioneiras, contribuindo para o avanço da equidade de gênero nos ringues da vida.
Para acrescentar ao tesouro de medalhas da Champion, Hebert Conceição (não é irmão de Robson), medalha de ouro, em Tóquio 2020, enquanto Beatriz Ferreira ficou com a prata. Apaixonado pelo boxe desde criança, Hebert Conceição encontrou, a partir dos 15 anos, na Academia Champion, onde Robson e outros grandes pugilistas treinavam, o local adequado para se encaminhar no esporte de uma maneira séria. Em busca do alto rendimento.
A nobre arte ensina caminhos de vida
Não bastasse um cartel de dar inveja a estadunidenses, russos, chineses e europeus em geral, a Champion vincula sua história ao amparo a quem mais precisa, escapando da mecânica de mercado privada de práticas virtuosas.
Merece, sim, um belo memorial, não apenas para honra ao mérito do boxe baiano, mas em alcance mundial, pois trata-se de uma história carregada de talento, persistência, superação e amor ao desporto.
A nobre arte demonstra, em sua academia top, o quanto combate a violência, por meio do Projeto Campeões da Vida, tendo recebido 9 mil jovens em 34 anos de portas abertas para a juventude de todos os bairros e vielas.
O maior problema vivido hoje, no cotidiano de cidadãs e cidadãos, a insegurança, poderia muito bem ser enfrentado com o apoio ao projeto idealizado e desenvolvido por Luiz Dórea.
“Recebemos gente, aqui, não só da Cidade Nova. Tem de Pernambués, São Caetano, Suburbana, vem jovem de todo lugar, a partir de 10 anos”, afirma o mentor do benfazejo empreendimento.
E mais: prepare-se Dórea para a longevidade, pois já há avô comprando luvas e saco de pancada para o treinamento de netinhos de quatro anos, aguardando apenas ficar na idade permitida para começar uma nova safra de combatentes.
Embora passe invisível ou bem menos noticiado, em relação aos “Brasileirões” e à seleção de futebol, o boxe poderia dar retorno em educação massiva, além de descomprimir a raiva de tantas e tantos discriminados por sua origem.
Trabalhando em família, consagrando a união como valor maior, Luiz Dórea tira o sustento, distribuindo o treinamento com o filho Luiz Dórea Jr, enquanto a esposa, Rosângela Barreto, e a filha, Laila Dórea, ficam no administrativo.
Assim, tem ajudado a orientar milhares de jovens a construir histórias de vida imunes à criminalidade, a partir de escolhas sensatas, ao preferirem as luvas ao consumo de drogas, por exemplo.
No entanto, alerta Dórea, o boxe não é um esporte barato, pois são necessários suplementos, custeio de viagens para disputa de competições, alimentação balanceada para atletas, fisioterapia e medicamentos…