ENTREVISTA
"Estamos vivendo uma crise ética muito grande"
Um dos mais importantes artistas plásticos contemporâneos, reconhecido, certificado e elogiado por especialistas do Brasil, França, Suíça, Espanha e Estados Unidos, o baianíssimo Bel Borba está com uma exposição de obras inéditas no Museu de Arte da Bahia a partir deste 8 de agosto.
Trata-se da mostra “Saveiros, Salvador cidade da Bahia” que, na verdade, reúne seis coleções: Caligrafia Preta e Branca, Saveiros (coleção dividida em dois módulos), Veleiros (também com dois módulos), Esculturas em aço e madeira e mais sete telas de 12 metros quadrados pintadas no próprio museu, no calor da montagem da exposição.
“Eu estava, há 10 anos, sem fazer uma exposição formal na Bahia e resolvi expor numa grande sala do museu, ainda em reforma, com as marcas dos tapetes que foram retirados, restos da pintura antiga nas paredes; gosto dessa fisionomia, que dialoga com o que eu faço”, explicou o artista.
E complementa: “o Museu de Arte da Bahia, pra mim, tem muita simbologia, muito significado, muita importância. Um sobradão lindo, parece um castelo. Paredes com cinco metros de altura e a sala que vou ocupar tem quase mil metros quadrados”.
Entrevista aos jornalistas Vander Prata e Césio Oliveira. Vídeo e fotos, João Lins.
VivaBahia – Você é um artista presente nas ruas da Bahia, do Brasil e de muitos outros países mundo afora. Qual é a diferença entre criar uma obra para uma galeria ou para exibi-la nas ruas?
Bel Borba – Na verdade, uma coisa não anula a outra. As galerias, os museus, os espaços formais, clássicos, para apresentar uma obra de arte, não são anulados pelos espaços públicos, abertos, que eram alternativos e que hoje já se transformaram em espaço habitual dos artistas.
A maioria dos artistas já faz ou almeja fazer intervenções em espaços públicos, que é um espaço atraente, sedutor e que, mesmo que informalmente, sem as condições ideais, milhares de pessoas transitam por ali. O perfil das pessoas que circulam diante das obras nas vias públicas, nas avenidas, nas encostas é um. Os que transitam em galerias é outro e os que transitam em museus é outro.
Nunca me classificaram assim, eu também não gosto de ficar me classificando, mas eu me identifico muito com o pop. Quando você coloca um trabalho num espaço público – isso é da minha natureza, como bom baiano, soteropolitano típico –, eu acho que precisa ser um trabalho que a maioria das pessoas consiga digerir, entender, participar.
VivaBahia – Mas nem todas as obras expostas nas ruas são de fácil compreensão para o cidadão comum.
Bel – Acho que o artista tem a sua liberdade, dizem que tem a liberdade. Hoje até eu me pergunto se tem essa liberdade toda, porque é tanta patrulha. Eu nem sei se a liberdade ainda faz parte, se é uma prerrogativa dos artistas plásticos. E, é claro, muitos artistas preferem que a obra esteja untada do maior volume de subjetividade possível. Eu acho que mesmo uma obra de difícil entendimento, mais hermética, pra quem é mais iniciado, que exige um pouco mais de erudição, mesmo assim, tem que dar benefício da dúvida: que é que é isso? Como é que esse cara bota um negócio desse aqui, ninguém consegue entender o que é isso …
“Eu prefiro colocar na rua uma coisa que as pessoas consigam entender”
Eu prefiro colocar na rua uma coisa que as pessoas consigam entender, porque é a minha pegada pop. Mas cada artista tem sua pegada. Tem uns que querem que ninguém entenda nunca. Tem o cara que fez só pra ele, bota na rua e está pouco se lixando, quem entender, entendeu. Quem não entendeu, vá estudar. Eu respeito. Mas a minha preferência é alcançar as pessoas que vão passar por ali.
VivaBahia – E quando você coloca uma obra de arte na rua, qual a diferença entre colocar uma baiana do acarajé no Largo de Amaralina e um trabalho numa rua de Nova Iorque?
Bel – Todo lugar é sempre um desafio. Porque você está botando a sua cara na vitrine. Eu acho que o artista está botando sua carreira em jogo a cada trabalho. É igual ao médico: salva, salva, salva, morre um e é um Deus livre e guarde. As pessoas são muito intolerantes e esquecem das milhares de vezes que ele conseguiu salvar.
Eu sou uma pessoa muito cuidadosa, procuro ser elegante no tratamento com as pessoas, mas tenho muita gana pra defender a minha obra. Por exemplo: a baiana do acarajé. Houve uma polêmica imensa, porque falei que me inspirei na Cira, que posava sempre mexendo a massa dela, mas convidei Cida, que é da comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá, para posar.
Aí teve um melindre, um ciúme das meninas da Amaralina. Eu disse, olha, quando eu convido uma pessoa pra posar, eu posso fazer uma homenagem a Pelé e chamar um bailarino chinês. A identidade da baiana não está ali presente. E sim sua postura mais marcante, que, pra mim, é preparando a massa do acarajé.
VivaBahia – No início dessa entrevista, você falou de muita patrulha restringindo a liberdade do artista. Fale mais um pouco dessa questão.
Bel – A patrulha é sempre ligada à política. Não é essa a patrulha que eu falo. Me deixe formular melhor: eu acho que as pessoas estão perdendo a ética em muitos setores. Estamos numa crise ética muito grave, no mundo, no planeta. A pessoa diz o que quer, publica o que quer e está cagando. Por vezes, não dá em nada. Então, deve ser por isso, a impunidade. Isso está gerando uma série de problemas bem desconfortáveis.
VivaBahia – Como essa crise ética atinge o setor das artes plásticas?
Bel – O que acontece é que, hoje, cada curador, cada galerista, cada museu tem as suas preferências. O galerista tem os seus artistas. Os curadores têm seus segmentos das artes visuais que eles dão mais atenção. E tem os marchands independentes, cada um tem sua linha. Nos anos 60, 70, havia uma galeria que abarcava todos os artistas.
Mas se chegou a uma quantidade de artistas na Bahia e no mundo todo, que cada um teve que se especializar num universo. Mesmo que eles variem, variam dentro de uma faixa, de vanguarda, de contemporaneidade, pouco comercial, mais comercial, cada um tem a sua preferência. E eu noto que algumas pessoas discorrem sobre os outros artistas de uma maneira muito perversa, muito escrota, muito sacana.
VivaBahia – A concorrência selvagem…
Bel – Veja bem: o empresário do boxe tem o lutador dele, e ele diz o meu é melhor, o meu é o campeão, o seu é uma merda, os outros são todos uma merda, e isso depois vai ser decidido lá no ringue. E nos outros setores, não tem o ringue pra tirar a decisão de quem é o cara. Então, você só esculhamba com o cara, você que é o cara e outro é uma merda; o de lá diz, ele que é o cara, e não tem um lugar pra resolver como se resolve no boxe, onde quem não for o melhor vai a nocaute, beija a lona e tchauzinho. (risos)
“A evolução, a transformação é inexorável, sou contra o engessamento”
Sempre quem se destaca em algum mercado, vira um alvo fácil. Nas artes, eu acho que as pessoas desdenham com muita facilidade, falam mal do colega, pessoas que nem lhe conhecem. Isso não mata, mas fere. As pessoas têm que aprender a viver com o que não concordam. Não é porque você não gosta, não concorda, ou não prefere, que aquilo tem que ser execrado, ser destruído, ser deletado. Isso é uma coisa tão óbvia…
VivaBahia – E a cidade do Salvador, Bel? Está perdendo muito da sua paisagem, dos seus costumes, das suas tradições?
Bel – Eu acho a cidade do Salvador uma cidade internacional. Acho que esta cidade se projeta para o mundo com muita volúpia, porque nós temos uma riqueza cultural muito forte na música, na comida, no clima. As perdas, elas existem, mas é papel dos artistas, dos agentes culturais, da mídia, dos historiadores, dos museus, dos antropólogos, dos setores competentes preservar a origem das coisas, a cultura que conquistamos ao longo de 400 anos. Mas a evolução, a transformação é inexorável. Eu sou contra o engessamento das coisas. Eu sou sempre a favor da renovação. Um pé no passado, mas o pensamento no futuro. Uma coisa não anula a outra.
VivaBahia – Os artistas plásticos baianos da sua geração participavam mais do Carnaval da Bahia, das festas populares, hoje quase não participam… Você vê assim?
Bel – No Carnaval eram Fernando Coelho, Gato, Juarez Paraíso, Renato. Quando acontecia, eram sempre esses que se propunham e que concorriam formalmente nas licitações da época. Mas daí pra dizer que os artistas participavam da decoração, não é bem assim. Eu, por exemplo, participei como auxiliar de Luís, Gato, Juarez. Eles abarcavam auxiliares. Mas, como produção intelectual, processo criativo mesmo, eu não presenciei. Por isso, não posso dizer que os artistas participavam da decoração da cidade.
VivaBahia – Mas hoje, com os grandes patrocinadores dos eventos, nem esses grupos participam mais.
Bel – Na realidade, o que mudou foi o Carnaval. Os blocos, os trios, os camarotes… são mudanças. Nenhuma boa solução dura pra sempre. Imagine as que não são muito boas. Na verdade, eu não tenho muita competência pra discorrer sobre o Carnaval, porque não é a minha praia.
VivaBahia – Qual a diferença das exposições virtuais que se faz hoje e da exposição de obras físicas?
Bel – Rapaz, tudo é legítimo em arte. Até a negação disso tudo. Às vezes, a obra que você acha que tem que fazer é negando tudo. Porque eu acho que toda atitude de um artista, por mais informal, por mais discreto, por menos irreverente, por menos conceitual que ele seja, a sua ação está contestando as outras. Não precisa obrigatoriamente estar protestando. Então, não importa se a obra é virtual. Eu sou um artista totalmente físico, uso muito a tecnologia nas minhas coisas, mas minhas maquetes são feitas de tesoura e estilete e não uso nem um operador. Depois que ela está pronta, eu contrato alguém para transformar em digital, dar voltinhas, fazer o que eu quiser. Nada contra quem tem suas preferências pela alta tecnologia digital.
“Christo é um dos maiores, o mega intervencionista da arte contemporânea”
VivaBahia – Quem são os seus ídolos nas artes? Houve um tempo em que você usava o bigode do Salvador Dalí…
Bel – (rindo) Era, era. Na verdade, eu vi uma foto do meu bisavô, ele tinha aquele bigodinho e ele parecia muito comigo. Aí eu raspei o bigode e levantei as pontinhas, mas passou, nada dura pra sempre.
VivaBahia – E seus ídolos, os mestres, os inspiradores?
Bel – Sempre que me perguntavam qual era o artista que eu era mais fã, eu dizia Christo. Ele é romeno, se naturalizou americano. Ele é um dos maiores, mais voluptuosos, o mais mega intervencionista da história da arte contemporânea. Ele embrulhou a ponte lá em Paris, embrulhou o Congresso na Alemanha, colocou uma cerca imensa que separava a Califórnia do Arizona, fez um trabalho na Itália muito interessante, que eram intervenções flutuando no mar. Ele também fez uma coisa que eu, quando soube, fiquei em êxtase: ele disse que não queria patrocínio.
“Quer me patrocinar? Compre minha obra, que você já está me patrocinando”. Eu adorei isso. Eu também digo: compre minha obra que você já está me ajudando. Porque quando você compra a obra de um artista, você está apoiando a trajetória dele, o perfil dele, a ação dele.
VivaBahia – Você conheceu Christo?
Bel – Rapaz, aconteceu uma coisa muito curiosa: Eu tenho um representante em Dusseldorf (cidade da Alemanha), que estudou História da Arte em Portugal, fala português, tem livro sobre Lelé, Oscar Niemeyer, que tive a honra de fazer a capa. Ele vem de uma família que lida com as artes há 150 anos. A família dele era dona da mais antiga editora de gravuras da Alemanha. É o professor Alexander Fils, – que inclusive acabou de organizar uma exposição minha inspirada nas pessoas de Salvador, chamada Filhos do Brasil, marcada para 25 outubro, na Europa.
Ele é o representante exclusivo do Christo na Alemanha. Christo morreu recentemente, e não sei se vai continuar sendo. Mas o professor Alexander, por ser representante desse diminuto artista da América do Sul e do superstar internacional que é o Christo, nos colocou na mesma sala e no cartaz Bel Borba, Christo e Jeanne Claude, que é a esposa do Christo. Então você vê, foi um golpe de sorte. Eu passei a vida toda dizendo: esse é o cara, e um dia Deus pega a gente e coloca a gente numa mesma sala, com o mesmo representante, expondo no mesmo salão.
“Andy Warhol dizia que todo mundo ia ser famoso por 15 minutos. É muito, hoje basta um minuto”
VivaBahia – E na Bahia, você é fã de quem?
Bel – Na Bahia, eu cresci sendo fã dos artistas que estavam em voga, produzindo arte na época. Juarez Paraíso, Edson da Luz, Jamison Pedra, Carlos Bastos, Calazans Neto, os chamados sete medalhões. Hoje, nós somos milhares, milhões de artistas no mundo inteiro. E todo mundo hoje, graças a Deus, tem os seus meios para fazer o seu sustento, a sua visibilidade e, merecendo ou não, a chance de ter o seu minuto de mídia maciça. Quando Andy Warhol dizia que todo mundo ia ser famoso por 15 minutos, ele não sabia o quanto custa 15 minutos de televisão, ou de qualquer mídia paga (risos)… 15 minutos é muito, Andy. Menos, Andy… (risos). Hoje, um minuto é muito…