A jornalista e escritora Adriana Negreiros, paulista de nascimento e cearense de criação, foi a autora de um dos lançamentos mais comentados no cenário literário brasileiro, Maria Bonita – Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço (Companhia das Letras/Objetiva, 2018). A autora já viveu também no Porto, em Portugal, com o marido, o jornalista e biógrafo Lira Neto. Começou no jornalismo em 1996, como repórter de política do Diário do Nordeste, e trabalhou nas revistas Veja, Playboy e Claudia. Graduou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo.
A personagem central do seu livro não é mais Lampião e o seu bando, como estamos acostumados a ler e ouvir, mas a Rainha do Cangaço, a jovem sertaneja de Malhada do Caiçara, Bahia, que largou tudo para seguir a sua paixão, àquela altura o bandido mais procurado no Brasil.
A mulher mais importante do cangaço brasileiro ganha sua biografia mais completa. O livro retrata a sua trajetória e dá voz às mulheres raptadas ou fugidas com os cangaceiros, fala das conquistas e perdas, da alegre cantoria sob o luar às cotidianas fugas pela seca afora, no cenário que amarga a boca e resseca olhos, no sertão do nordeste.
Maria Gomes de Oliveira, conhecida como Maria de Déa, morreu em 28 de julho de 1938, aos 28 anos, sem saber que, um dia, ganharia fama e idolatria com o apelido póstumo de Maria Bonita.
Afinal, quem foi Maria de Déa?
Quem responde com exclusividade à revista VivaBahia é a autora, Adriana Negreiros. Com a palavra:
Quem foi Maria Bonita?
É difícil dizer o que Maria de Déa pensava da vida porque ela não deixou nenhum registro de seus pensamentos para a história. Ao contrário de Lampião, que deu entrevistas para jornalistas, o pensamento de Maria de Déa não foi motivo de interesse da imprensa. Repórteres e cronistas da época estavam mais interessados na aparência da companheira de Lampião, na formosura de suas pernas, nos traços de seu rosto e na maneira de se vestir – infelizmente, quando mulheres ocupam papel de destaque, é comum que despertem exclusivamente esse tipo de interesse prosaico.
Por isso, reconstituir a trajetória de Maria Bonita representou, para mim, um enorme desafio – precisei lidar com fontes esparsas e contraditórias, com a ausência de informações sobre períodos cruciais de sua vida, e buscar construir uma narrativa a partir de peças avulsas.
Dito isso, não é possível afirmar, com precisão, como Maria Bonita conheceu Lampião. Há uma série de versões sobre o primeiro encontro entre os dois, algumas claramente fantasiosas. O que se sabe é que Maria era uma sertaneja da Malhada do Caiçara, na Bahia, que, infeliz no casamento com um sapateiro, largou tudo para seguir o homem por quem se apaixonara – homem que, àquela altura, já era o criminoso mais procurado no Brasil.
Entre lendas e fatos
A representação heroica de Maria Bonita foi construída a partir de lendas disseminadas em relatos pessoais, histórias de cordel e, posteriormente, pelo cinema e televisão. Como as demais presenças femininas no cangaço, no entanto, Maria foi uma mulher que se submeteu aos ditames masculinos, sendo considerada, no bando, inferior aos homens. Essa situação era semelhante à das demais mulheres cangaceiras, tidas como propriedades dos bandoleiros a quem estavam ligadas – uma realidade que escancara a denúncia feita há tempos pelas feministas, de que as relações de intimidade podem ser mais violentas para as mulheres do que as estabelecidas em espaços públicos.
Maria Bonita, porém, entrou para o cangaço porque quis, apaixonada que estava pelo líder do bando. Outras cangaceiras, como Dadá, ingressaram no grupo à força, após serem raptadas – e violentadas sexualmente – por cangaceiros ainda na infância.
O que une essas mulheres, para além de suas singularidades, é o fato de serem sertanejas para quem o destino traçado não previa grandes conquistas: na hipótese considerada a mais alvissareira, um casamento com filhos. Poucas sertanejas conseguiam estudar e, ainda que tivessem oportunidade de frequentar algo semelhante a uma escola, era comum que precisassem interromper os estudos para ajudar a mãe nos serviços domésticos e na criação dos irmãos mais novos.
Mulheres no cangaço
Cangaceiras eram mulheres inquestionavelmente fortes. É preciso ser uma fortaleza para enfrentar a rotina de violência e demais dificuldades a que eram submetidas – perseguição policial, agressão dos homens com quem se relacionavam, além das intempéries da vida ao relento, como o calor intenso do sertão, a fome, a sede. Duas cangaceiras tiveram trajetórias de maior destaque: além da Maria Bonita, Dadá, que se se tornou companheira de Corisco.
No dia a dia, cangaceiras tinham, em certa medida, uma rotina parecida com a das demais mulheres do sertão: dedicavam-se aos serviços domésticos – preparo dos alimentos, higiene, costura e cuidados dos homens quando eles estavam doentes.
A tarefa de combate era exclusiva dos homens, com raras exceções – elas nem sequer pegavam em armas, salvo uma ou outra ocasião especial. Não criavam os filhos porque, após o parto, eram obrigadas a enviar as crianças para outros criarem, numa situação de violência que marcaria essas mulheres para sempre – ao entregar o primeiro filho para adoção, Dadá diria ter sentido “a maior dor do mundo”.
Paixão e violência
A convivência era amorosa quando havia amor – o que parece ter sido o caso de Maria Bonita e Lampião. Não há relatos de agressões físicas de Lampião contra Maria Bonita, ao contrário do que ocorria entre outros casais. Zé Baiano assassinou a companheira Lídia após descobrir que ela se envolvera com outro cangaceiro, conforme previa o código de conduta do bando – supostas traições cometidas por mulheres mereciam pena de morte. Ressalte-se que a pena era prevista apenas para as mulheres – os cangaceiros podiam relacionar-se com quem bem entendessem, sem que isso fosse compreendido como uma contravenção.
Não havia a compreensão – e ainda hoje não há de todo, especialmente entre os admiradores do cangaço – de que as relações sexuais forçadas entre cangaceiros e sertanejas constituíssem estupro. A violência era tratada como “brincadeira” ou tática legítima de guerra. Li e ouvi relatos, em tom de pilhéria ou até admiração, sobre cangaceiros que se vingavam de policiais “fazendo mal” – eufemismo para estuprar – a mulheres ligadas a eles, como irmãs, esposas ou mães. De forma geral, considerava-se que homens que “faziam mal” a mulheres estavam apenas demonstrando quão viris eram.
O que se pode afirmar é que, em contextos de precariedade e pobreza, mulheres sempre estão entre as mais atingidas. Se a vida no sertão já oferecia poucas possibilidades de emancipação para os homens, para as mulheres essas possibilidades eram praticamente inexistentes.
A primeira dama
Sim, Maria Bonita era a Rainha do Cangaço. Como esposa do Rei do Cangaço, ela gozava de privilégios dos quais não desfrutavam outras cangaceiras, como Dadá. Essa situação de privilégio, naturalmente, despertava a antipatia das demais mulheres – e de homens, caso de Corisco
Cachaça e fuga
Nos raros momentos de tranquilidade, cangaceiros cantavam e dançavam – nesse aspecto, não se diferenciavam dos demais sertanejos. Também bebiam cachaça e, no caso de Lampião, bebidas mais sofisticadas, como whisky, que recebia de presente de coronéis, políticos e demais poderosos da região. Essa aproximação com os poderosos locais era a melhor preparação possível para que Lampião não fosse capturado e morto. Enquanto serviu aos interesses das elites locais, ele desfrutou de certa tranquilidade para atuar no sertão. Tinha, nas grandes fazendas, esconderijo seguro para livrar-se da perseguição policial.
Que homem era esse?
Lampião era dotado de senso de estratégia, talento para a diplomacia – transitava entre coronéis, políticos e policiais, fazendo acordos nos quais, na maioria das vezes, levava vantagem – e indubitável espírito guerreiro. Também era vaidoso, como é comum a quem ocupa espaços de poder. Sabe-se que gostava de ver as próprias fotos estampadas nos jornais, e fazia questão de ser retratado como um homem de palavra, espécie de fora-da-lei dotado de princípios éticos inabaláveis.
Se eu fosse uma admiradora apaixonada por Lampião – melhor dizendo, um admirador –, talvez concordasse com a ideia de que ele era “mulherengo”, como se isso fosse vantagem. Apesar do feminismo, nos tempos recentes, ter servido, em alguma medida, para mostrar o ridículo que há em certos comportamentos masculinos, a ideia de um homem “garanhão” ainda soa atraente para muitos.
Dito isso, não me parece que Lampião fosse um grande sedutor, um tipo irresistível, embora exercesse inegável fascínio sobre mulheres e homens – mais sobre homens. Costurava, como era comum aos homens do sertão, mas nada leva a crer que fosse leitor de livros e apreciador de cinema (hábitos, aliás, que não estavam ao alcance dele na rotina do sertão). Que tenha tido experiências esporádicas com literatura e cinema é uma coisa; que fosse leitor contumaz e cinéfilo é outra.
Uma história fantástica
É mandatório pensar o cangaço fora da polarização bandidos ou heróis.
A polarização bandido e herói pode servir ao entretenimento, mas não à história – tampouco à arte. A história do cangaço é complexa demais para ser reduzida a uma conclusão simplória sobre ser do bem ou do mal, como se isso existisse.
A história do cangaço é fantástica, com todos os elementos de uma narrativa atraente e de sucesso – guerra, perseguição, fuga, violência, traições, amores. E tudo isso se dá em cenário igualmente fantástico, que é o sertão nordestino. A estética do cangaço, brilhante e colorida, também colabora para esse clima de magia que há em torno do tema. No caso específico de Lampião e Maria Bonita, uma mitologia transformou-os em espécies de heróis – e heróis costumam ser adorados. Não é de se admirar que ainda haja, 85 anos após a morte do casal, livros sendo escritos e filmes e séries sendo filmados sobre o assunto.
Foi necessário um trabalho duro de apuração para separar histórias que poderiam ser comprovadas – e que derivavam de fontes confiáveis – da pura invencionice. Em diversos casos, não foi possível chegar a uma conclusão confiável sobre a veracidade da história. Quando isso ocorre, é obrigação do jornalista deixar tal situação evidente para o leitor. Foi o que aconteceu no capítulo em que conto como Maria Bonita conheceu Lampião, como mencionei na primeira pergunta desta entrevista. Tampouco consegui chegar a uma conclusão definitiva a respeito da origem do apelido “Maria Bonita” – optei, nesse caso, por apresentar ao leitor as duas versões que me pareceram mais convincentes, para que ele faça seu próprio juízo.
Na prateleira da autora
Adriana Negreiros lançou também, em 2021, outro livro elogiado e atualíssimo, A vida nunca mais será a mesma – Cultura da violência e estupro no Brasil (Objetiva), sobre a cultura da violência e o estupro: “O que remonta aos tempos coloniais, com europeus estuprando mulheres negras e indígenas, e chega à atualidade, com homens em posição de poder tratando vítimas de violência sexual como culpadas pela própria barbárie a que foram submetidas”.
A autora prepara atualmente duas novas biografias: Dercy Gonçalves e Aracy de Carvalho (esposa de Guimarães Rosa), conhecida por “Anjo de Hamburgo”, por ter salvado judeus na Segunda Guerra Mundial.
As fotos resgatadas pela autora Adriana Negreiros (acima), e algumas reproduzidas aqui, são do fotógrafo libanês Benjamin Abrahão Botto (1890/1938), o único a registrar, em 1936, o dia a dia de Lampião e seu bando. Morou na casa e foi secretário do Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, Ceará, onde conheceu Lampião. O filme ‘Baile Perfumado’ é sobre a história do fotógrafo.