Edição 04
Agosto
2024

Comida temperada no dendê, afeto e verso!

Chef Tereza Paim/Foto: Leonardo Freire

Lucas Oliveira

“Na Bahia tem, tem orixá

Na Bahia tem arroz de hauçá

Santo e comidas, tem canjerê

Na Bahia tudo tem,

molho de azeite de dendê”

A ligação quase inseparável entre a poesia com os ritmos do samba e os pratos típicos da culinária baiana está profundamente entranhada no imaginário coletivo. Os versos acima, da canção Na Bahia (1938), composição do baiano Humberto Porto (1908-1943) em parceria com o carioca Herivelto Martins, imortalizados no único registro fonográfico em que as duas grandes cantoras da Era de Ouro do Rádio, Carmen Miranda e Dalva de Oliveira, dividem os vocais.

Para explorar as delícias da Bahia, o caminho é o mestre pioneiro, intelectual Manoel Querino (1851-1923). Aluno fundador do Liceu de Artes e Ofícios e da Escola de Belas Artes, Querino foi pintor, escritor, abolicionista e pioneiro na valorização da cultura africana na Bahia.

Seu trabalho póstumo Arte Culinária na Bahia (1928) revela como a miscigenação dos povos indígenas, portugueses e africanos influenciou a gastronomia baiana. Além do catálogo de receitas, o livro oferece reflexões sobre a alquimia que deu origem à cozinha baiana, destacando a contribuição daqueles que trabalhavam na casa grande e dormiam na senzala.

“A Bahia encerra a superioridade, a excelência, a primazia na arte culinária do país, pois o elemento africano, com sua condimentação requintada de exóticos adubos, alterou profundamente as iguarias portuguesas, resultando em um produto totalmente nacional, saboroso e agradável ao paladar mais exigente, o que excede a justa fama da cozinha baiana”, resume Querino.

Assim como nos sambas de Caymmi, que transformavam os pratos da culinária baiana em versos (“quem quiser vatapá, ô, que procure fazer, primeiro o fubá, depois o dendê”), os livros de Jorge Amado também incorporavam o universo da cozinha ancestral. A filha do escritor, Paloma Amado, reuniu, na obra A Cozinha Baiana de Jorge Amado, as preferências de alguns dos seus personagens, revelando o que não podia faltar na mesa do pai. O sarapatel, por exemplo, aparece em Dona Flor e Seus Dois Maridos (1966), enquanto a moqueca de peixe está presente em A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água (1959).

Para contar suas heranças ancestrais e a sabedoria da culinária do povo baiano, VivaBahia conversou com três mulheres, três saberes profundos sobre a arte de manipular ingredientes e servir à moda baiana, as chefs de cozinha Leila Carreiro, Tereza Paim e Madalena Gonçalves.

Matriz africana à moda tropical

Chef Leila Carreiro/ Foto: Divulgação
Chef Leila Carreiro/ Foto: Divulgação

Antes de fundar o Dona Mariquita, prestes a completar 20 anos, localizado na Rua do Meio, 178, no boêmio bairro do Rio Vermelho, a chef Leila Carreiro revisitou memórias e raízes do Recôncavo, região natal de sua mãe, e pesquisou o legado de Manoel Querino, bem como outros estudiosos da culinária baiana, a exemplo de Carlos Dórea e Guilherme Radel. Uma viagem à Espanha mudou seus planos. “Levei algumas coisas de Salvador na bagagem: carne de fumeiro, farinha, cachaça e outros itens que o baiano adora. Lá, preparei alguns pratos, salguei carne, fiz carne do sol, e os amigos do meu namorado espanhol na época ficaram impressionados”, recorda Leila.

A associação de uma cozinheira baiana, ainda insegura sobre seu futuro profissional, com empreendedores espanhóis para abrir um restaurante em Barcelona parecia promissora. “Eu tinha minha vida e minha família no Brasil, e não queria me afastar. Sempre disse que não queria sair do Brasil para provar que poderia vencer na vida”, reflete Leila. Ela, então, sugeriu aos sócios que o restaurante fosse aberto no Brasil.

O restaurante do Rio Vermelho oferece um ambiente climatizado e sofisticado, com toalhas de mesa brancas em richelieu, um bordado que remete aos trajes tradicionais dos terreiros de candomblé, usados como cortinas. A área externa é composta por paredes de sapê, características das casas do interior.

Durante uma visita ao Dona Mariquita, o professor, engenheiro e escritor Guilherme Radel, autor da trilogia A Cozinha Sertaneja da Bahia (2009), A Cozinha Praiana da Bahia (2005) e A Cozinha Africana da Bahia (2012), presenteou Leila com seus livros, decisivos na escolha do caminho a seguir. “Me identifiquei mais com a cozinha africana. Ao abrir o livro, reconheci várias comidas que minha mãe preparava na minha infância, como o efó”, recorda Leila. O efó, um prato típico da culinária baiana de origem africana, geralmente é servido com peixe e arroz. No candomblé, é uma oferenda à Nanã, a orixá mais velha entre as divindades africanas das águas.

Restaurante Dona Mariquita/ Foto: Lucas Oliveira

Ao explorar o universo da matriz africana, transmitido pela oralidade, Leila encontrou um caldeirão de ingredientes reunidos em pratos, como o arroz de hauçá, catalogado no início do século XX por Manoel Querino. Os hauçás, etnia originária da Nigéria, foram trazidos escravizados ao Brasil e participaram da Revolta dos Malês. “Percebi que não era apenas um trabalho, mas uma missão de vida. Eu estava resgatando tradições da Bahia. Então, denominei essa cozinha como um patrimônio coletivo imaterial, uma riqueza intrínseca a nós”, compartilha.

Dendê pinta culinária com as cores do pôr do sol

Restaurante Casa de Tereza/Foto: Lucas Oliveira

“O dendê pinta a nossa comida com as cores do pôr do sol da Baía de Todos-os-Santos”, retrata a chef baiana Tereza Paim, que, após uma bem-sucedida carreira em telecomunicações, se dedicou de corpo e alma à culinária baiana, inaugurando a Casa de Tereza. Filha e neta de comerciantes, Tereza uniu paixão e destino ao abrir um restaurante temático, que se expandiu para uma rede de lojas e um boteco.

A Casa de Tereza funciona em um casarão localizado no tradicional bairro do Rio Vermelho, Rua Odilon Santos, 45. 

Há mais de uma década, acumula premiações e integra o circuito de restaurantes que atraem baianos e turistas de todas as idades, oferecendo conforto em uma experiência cultural e gastronômica. Quando batizadas na cozinha de azeite, as crianças recebem um certificado com as mãos manchadas de dendê, o óleo mais consumido no mundo, extraído do fruto do dendezeiro, uma palmeira africana trazida para o Brasil na primeira metade do século XVI.

Recanto da devoção no Restaurante Casa de Tereza/Foto: Lucas Oliveira
Recanto da devoção no Restaurante Casa de Tereza/Foto: Lucas Oliveira

“Desde o momento em que o cliente entra, encontramos uma forma de conectar minha arte culinária com outras manifestações artísticas da Bahia em quatro ambientes: a Galeria Iemanjá, onde 11 artistas pintaram as mesas; um salão contemporâneo em homenagem a Bel Borba, com seus mosaicos; e, no andar de cima, o salão Terreiro, que faz alusão ao candomblé, ao lado da sala Barroco das Igrejas, representando o sincretismo”, descreve Tereza.

O cardápio oferece duas opções de menu experiência da cozinha de santo: banquete para ibeji e banquete para as yabás (Iansã e Iemanjá), ambas com entrada, prato principal, sobremesa, e como recordação uma oferenda e um postal com os símbolos dos orixás.

O carro-chefe da Casa de Tereza é a moqueca, disponível em versões de camarão ou mista, combinada com peixe ou polvo. A sugestão é servi-la após a degustação dos bolinhos de feijoada, acompanhados de geleias de maracujá e manga picante. Além da arte presente nos sabores e ambientes, um pianista recebe os clientes com uma trilha suave, completando a experiência sensorial da Casa de Tereza.

Prato do dia: comida de afeto

Música e gastronomia estão intimamente conectadas não apenas no ambiente do D’Madda, restaurante situado no Alto do Candeal, Alameda Bons Ares, 191, mas também na vida da família de Madalena Gonçalves, Dona Mada. Mãe de nove filhos e guardiã dos segredos e temperos encontrados nos quintais de uma das comunidades mais antigas de Salvador, cuja origem remete a um quilombo urbano que acolhia escravos libertos e fugitivos, Dona Madalena revela: “Aqui, tudo era mata, fazendas, chácaras. A gente não precisava sair para comprar maxixe, abóbora, nada. Dava tudo aqui em qualquer canto, no meio dos matos. Até patchouli a gente usava para dar um cheirinho nas roupas, que hoje custa uma fortuna.”

As panelas, jarros e outros utensílios da casa de Dona Madalena, que poderiam ser percutidos, serviram como instrumentos para seu filho criativo Carlinhos, que anos mais tarde se apresentaria ao mundo como Carlinhos Brown, o cacique do Candeal. Maior entusiasta do talento da mãe e da irmã, a chef Lúcia Cristina, o artista sempre mobilizou parceiros e amigos para apreciar os pratos preparados pela dupla que, muito antes de se tornar tendência, já representava a comida de afeto.

Dona Mada, Carlinhos Brown, chef Lúcia Cristina/Foto: Divulgação
Dona Mada, Carlinhos Brown, chef Lúcia Cristina/Foto: Divulgação

“Desde que Carlinhos começou sua carreira artística, a comida sempre teve um papel integrador, unindo pessoas, compositores, músicos e cantores. Isso sempre foi tão presente quanto a percussão dele. Uma coisa está ligada à outra”, rememora a chef Tina, fazendo uma analogia entre o tambor e a panela.

Inaugurado há pouco mais de três meses, o D’Madda é a realização de um sonho familiar, fruto de muita dedicação e trabalho. Desde o início no boteco Baladinha, localizado na casa de uma vizinha de Dona Madalena, até o Cantinho da Tina, instalado no Candeal Gueto Square – casa de shows que sediou ensaios da Timbalada –, a família sempre esteve unida tanto nos palcos com Carlinhos Brown quanto na cozinha com Dona Madalena e a chef Lúcia Cristina.

Para abrir os caminhos dos clientes que chegam ao restaurante, uma fonte de água na entrada exala uma mistura de essências de alfazema e flor de laranjeira. Esse é mais um dos segredos cultivados por Dona Madalena, que costuma acalentar seus filhos e netos com um banho de cheiro em momentos de apreensão.

Em um dia de sorte, além de degustar a cozinha afetiva do D’Madda, o cliente pode cruzar com o cacique do Candeal, Carlinhos Brown, perambulando pela casa e cantarolando uma nova melodia, enquanto aguarda sua farofa de carne do sol ser servida.

Receitas de dar água na boca

Moqueca Mista – Chef Tereza Paim

Ingredientes: 4 porções   

60g de pimentão vermelho sem sementes cortado em rodelas | 60g de pimentão amarelo sem sementes cortado em rodelas | 60g de pimentão verde cortado em rodelas | 400g de cebola branca cortada em rodelas | 450g de tomate cortado em rodelas | 90g de coentro picado | 90g de cebolinha picada | 30g de pimenta-doce cortada em rodelas | 500ml de caldo de peixe | 400 ml de leite de coco | 90ml de azeite de dendê | 200g de tentáculos de polvo pré-cozidos e cortados em pedaços | 200g de banana-da-terra assada na casca | 200g de filé de peixe cortado em cubos grandes | 200g de camarão 21/25 descascado | Sal a gosto | 3 ramos de coentro e 1 pimenta dedo-de-moça (para decorar)

Modo de fazer

  1. Em uma panela de barro, leve os temperos (pimentões, cebola, tomate, coentro, cebolinha e pimenta) ao fogo alto com o caldo de peixe e deixe cozinhar com a panela tampada até que fiquem macios.
  2. Adicione o leite de coco e o dendê e mexa bem para misturar.
  3. Inclua os polvos e a banana, deixe cozinhar por 3 minutos com a panela destampada e em seguida adicione os peixes. Deixe ferver por 8 minutos.
  4. Por último, adicione os camarões e o sal. Envolva bem os camarões no caldo e deixe cozinhar por mais 2 minutos. (Lembre-se de que a panela de barro concentra muito calor, então os camarões terminarão de cozinhar no percurso da cozinha para a mesa).
  5. Desligue o fogo e sirva a moqueca borbulhando, decorando com os ramos de coentro e a pimenta dedo-de-moça por cima.

* Receita do livro Na Mesa da Baiana, da chef Tereza Paim

Farofa de Carne do Sol – Chef Dona Mada

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Ingredientes: 2 porções

1 xícara de banana-passa em cubos | duas colheres de sopa de manteiga | 2 xícaras de farinha de mandioca | 300g de carne do sol (coxão mole) | 2 colheres de sopa de vinagre | 1 cebola picada | 1 tomate picado | salsa a gosto

Modo de fazer

Frite a banana-passa na manteiga e depois adicione a farinha de mandioca para encorpar e formar a farofa. Fervente a carne do sol para dessalgar, e assim que levantar fervura desliga e frite na manteiga com cebola picada. Depois dela bem frita, adicione duas colheres de vinagre. Prepare a vinagrete com cebola, tomate e salsa a gosto e tempere com azeite de oliva, sumo e raspas de limão e sal.

Arroz de Hauçá – Chef Leila Carreiro

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São 3 receitas. Uma é do arroz de coco, que já pode estar cozido na água e sal. Depois de cozido, acrescente 100g de coco seco batido no liquidificador com 100ml de água e 1/2 colher de chá de açúcar, deixe cozinhar até secar, enforme e deixe.

A segunda receita. No liquidificador, bata 100g de camarão seco, uma cebola média, 100ml de leite de coco e triture. Numa frigideira, coloque 100ml de azeite dendê; quando estiver bem quente, acrescente aos poucos o molho triturado e deixe reduzir.

A terceira receita é com meio kg de charque (coxão duro), corte em pedaços menores e coloque para ferver trocando a água por 3x. Desfie a carne e coloque para fritar em óleo quente; não demore muito para não perder o sabor.

Por último, monte o arroz enformado, o molho de camarão por cima com alguns camarões inteiros e ao redor coloque a carne seca.

Lucas Oliveira, jornalista

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