O samba de roda nasce no mangue
Mário Paulista
Fazendo sua feira, comprando temperos, carne de sertão, farinha e às vezes bebericando com um velho colega de trabalho, Silvério, no Mercado da Farinha, Ecinho anda por Santo Amaro quase sem ser reconhecido.
É um senhor de baixa estatura, magro, andar ritmado pela perna cangalha, expressão no mais das vezes sisuda, pele preta de África e muitos sóis nos extenuantes trabalhos de mato, roça e maré; chapéu sob os olhos puxados e seu rosto inesquecível, altas maçãs-do-rosto que às vezes se desprendem em gaitadas com os íntimos.
Salvo a miúda turma do samba, tocadores, amantes, gente que teima em oferecer seus carurus e madrugadas aos velhos santos afro-católicos, encantados e orixás, talvez poucas pessoas imaginem que aquele senhor seja um dos últimos virtuoses de uma intricada arte, antiga e arrebatadora, em um dos mais afamados palcos deste espetáculo: um dos derradeiros cantadores de chula do município de Santo Amaro.
Em Acupe, todavia, é senhor de um título que os mais-velhos são muito criteriosos em admitir: sambador. Sambas “do tempo que o diabo inventou cuspir”, no dizer do velho sambador Lídio, juntam-se a outros mais novos, desfiados em melodias deliciosas no seu timbre tão característico, ritmados por seu inconfundível pandeiro que, palavra, abarca ritmos e sotaques que desafiam o senso-comum, nos transportam para tempos e lugares tão distantes quanto nossos.
Convidamos o leitor para, neste texto, através de um necessariamente “sintetissíssimo” sobrevoo por sua trajetória, molhar os pés no que há de carne-e-osso de uma
arte tão sublime quanto ignorada, laureada com o reconhecimento institucional de Obra-Prima do Patrimônio Imaterial pela Unesco há 18 anos.
É que o samba, alguns teimam em esquecer, não é folclore feito por massa sem identidade, mas arte feita e refeita por gente com nome e história: “Samba, aqui, era Norbertinho, Tomás, Quincas, Jajá, Paulo Baiacu, Detinha, Joca, João Brasi, Miguézinho…”, assim costumam responder insolitamente os mais velhos da terra quando perguntados sobre o samba, arte sua, no lugar de descrições técnicas ou rituais. Mais que lista onomástica, enxergamos nisto uma filosofia.
Se samba é dom, como costumam dizer os mestres deste ofício, também é herança: Ecinho é filho único de Dona Maninha, sambadeira que aos inacreditáveis 107 anos continua fazendo bambear o ceticismo de muita gente, hipnotizando com seu sapateado nos pés de uma boa viola
Nasceu à sombra de um pé de jaqueira
Filha de um casal de sertanejos de Santo Estêvão fugindo à seca, Eurides Bispo dos Santos nasceu na Murutuba, zona rural de Cachoeira. Foi em Cachoeira também, mas já na região da antiga usina da Acutinga, que, aos 7 de fevereiro de 1951, debaixo de um pé de jaqueira na fazenda Bela Vista, Ecinho veio ao mundo.
Seguindo a sina dos despossuídos, cedo Ecinho abandonou os laranjais da família Dutra na fazenda Cruz, onde trabalhava sua família, e “caiu no mundo”: sua trajetória da infância à vida adulta é cheia de contratempos e sofrimento – como sempre faz questão de pontuar.
Trabalhou como jóquei, roceiro, caçador, vaqueiro, jogador de bola, ajudante de pedreiro, cortador de dendê, operador de empilhadeira na fábrica da Coca-Cola, tratorista na Opalma S/A e tirador de piaçava, profissão com a qual se estabelece na década de 1980 de maneira definitiva no Quilombo do Acupe, vila de pescadores na qual vive até os dias de hoje.
É no bairro do “Sem-Teto da Prainha”, cujo nome guarda o histórico de ocupação em lonas pretas, a poucos metros do manguezal, que o encontraremos aprontando ganchos e cangalhas para as religiosas idas ao mato.
É em Acupe que Ecinho passa a integrar, ao lado de bambas mais velhos do samba, como “Mirto” Grande, Birrinho e João “Brasi”, a Burrinha de Valentim, no prestigioso lugar de puxador de sambas-corridos e marchinhas. Prestigioso para alguns, não para os implacáveis sambadores que se recusavam a admiti-lo como um dos seus. É que para ser reconhecido nesta confraria, mais que animar carurus com corridos de samba, repetitivos e de melodias previsíveis, era preciso dominar, sobretudo, a intrincada arte vocal e poética do canto da chula. Canto não: grito, como dizem.
É neste momento que, seguidamente vexado pelos mais-velhos, Ecinho conhece um de seus primeiros mestres: Leopoldo de Souza (1916-2016), verdadeira lenda do samba da região. Provar que faria de Ecinho sambador, mais que gesto generoso, era atestar a soberania do velho Lió sobre os demais.
O trato paternal com Ecinho até seus últimos dias não escondia o orgulho de tê-lo iniciado naquele métier. Anos depois, tomaria por mestre seu velho desafeto de samba, o sambador Antônio dos Santos (1940-2020). Este era conhecido na região por Preta de Gonçalo, dono de voz fantástica a quem orgulhosamente recorda como sua parelha no Raízes de Acupe, grupo que juntos haviam fundado em 2006, até os últimos anos de vida do mesmo.
Finda a feira, Ecinho balança na Topic com as sacolas no colo voltando pro Acupe, olhar perdido na paisagem, mirando a maré que se anuncia bruscamente após passar pelo arraial do Bângala. Por sinal em Acupe o povo tem um ditado: “Eu sou o pé de mangue: a maré enche e vaza, o mangue está sempre lá”.
O cobrador anuncia o ponto da Portelinha, Ecinho desce.
Mário Paulista, historiador e músico
O som do tambor bate mais forte no quilombo
O Acupe é um quilombo de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo da Bahia. Distante 17km da sede do município, situa-se na Península de Saubara-Iguape, na foz do Rio Açu (Pavão).
Marcado ecologicamente pela riqueza de seus manguezais, seu adensamento está historicamente ligado à ocupação por ex-escravizados de antigos engenhos e fazendas da região, como Acupe, São Gonçalo do Poço, Murundu, Pavão, Trindade e às atividades de mariscagem, pesca e extrativismo.
A comunidade é palco de uma série de tradições culturais, como capoeira, nego-fugido, caretas, mandus, bombachos, burrinha e samba-de-roda. O samba em Acupe obedecia sobretudo o calendário devocional do lugar, sendo indispensável nos Reis Roubados, Esmolas Cantadas, festas de caboclo e nos carurus domésticos do panteão afro-baiano.
Divide-se, grosso modo, em duas grandes modalidades, corrido e parada (chula): no primeiro, com canto de estrutura responsorial (solo-coro), canto e dança acontecem de forma simultânea; no segundo, o grito da chula é puxado por um duo vocal (a parelha), normalmente em tons de viola desafiadores e melodias sinuosas. Na esteira do processo de patrimonialização, a exemplo de várias comunidades, em 2006, sambadores e sambadeiras de Acupe formalizam o grupo Samba de Roda Raízes de Acupe para realização de apresentações.