Elieser Cesar
Antonio Brasileiro e Ruy Espinheira Filho
São dois poetas. Dois dos melhores poetas vivos do Brasil. Ambos baianos. Os dois octogenários e polivalentes, pois, com igual desenvoltura, escrevem também prosa (ficção e ensaios). As coincidências não param, pois também ensinaram em faculdades de Letras – um, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), o outro, na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Fizeram Mestrado e Doutorado na área de literatura. Fazem parte da Academia de Letras da Bahia (ALB). Dois poetas admirados no Brasil e – comportamento exemplar em meio às igrejinhas literárias e à vaidade egocêntrica da maioria dos artistas – que se admiram e se respeitam mutuamente, pois sabem que fazem boa poesia, cada um a seu modo e com o seu temperamento.
Ruy Espinheira Filho e Antonio Brasileiro respiram poesia e fazem versos desde a juventude. A amizade entre os dois já dura mais de meio século e se consolidou ao longo das últimas décadas no mesmo compasso da carreira de ambos. Se a poesia os uniu a vida toda, o estilo e o tema diferenciam a poética dos dois. Ruy olha para o passado para iluminar o presente e torná-lo suportável. Em Brasileiro, a perplexidade filosófica, a indagação ontológica, a crispação existencial em busca de respostas para o estar no mundo e a brevidade da vida. Com uma melancolia estóica, Ruy Espinheira Filho constata, e, com isso, aceita o imponderável, o que não se pode mudar, em seu inventário de perdas. Com temperamento vulcânico, Antonio Brasileiro questiona, indaga, diz e se desdiz à maneira de Fernando Pessoa. Ruy é proustiano. Brasileiro metafísico.
Obra em prosa e verso
Ruy nasceu em Salvador, em 12 de dezembro de 1942. Também artista plástico e pecuarista, Antonio Brasileiro nasceu em Ruy Barbosa, em 15 de junho de 1944, mas cedo mudou-se para Feira de Santana onde vive até hoje. Ruy e Brasileiro publicaram juntos o livro Poemas, pelas Edições Cordel (1973). Entre os principais livros de Ruy estão O julgado do vento, As sombras luminosas (Prêmio Nacional de Poesia Cruz e Souza do Governo do Paraná de 1981), Morte secreta e poesia anterior, A canção de Beatriz e outros poemas, entre outros.
Em prosa, escreveu Ângelo Sobral desce aos infernos (Prêmio Rio de Janeiro de Literatura, 1985) e os romances O príncipe das nuvens e Um rio que corre para a lua. Nos ensaios, destacam-se Tumulto de amor e outros tumultos – criação e arte em Mario de Andrade e Forma e alumbramento – poética e poesia em Manuel Bandeira.
Em 1998, ele foi eleito um dos vinte poetas contemporâneos mais importantes do Brasil, em consulta feita pela Fundação Biblioteca Nacional a escritores, críticos, professores e jornalistas de Cultura do Brasil.
Entre os principais livros de Antonio Brasileiro figuram Os três movimentos da sonata, A pura mentira, Licornes no quintal, Cantar da amiga, Fada e outros poemas, Dedal de Areia, Poemas Reunidos, Lisboa 1935 e Carta. Escreveu, ainda, o romance Caronte e Da inutilidade da poesia.
O poeta respira a memória
Ruy Espinheira Filho é celebrado como o poeta da memória. Em um de seus poemas mais antigos, Praça da Liberdade, de Sombras Luminosas, o próprio Ruy admite: “O que respiro é ontem’’. Densa de perdas, a poesia de Ruy é a comoção do efêmero. Nela, pulsa melancolia, uma tristeza fina, suave e benfazeja, como a chuva nos campos em um dia frio. A conta de Ruy é dolorosa, como vemos nos versos do poema Família, de A invenção da poesia: “Pai, mãe, irmão, amigos./Família./Avós mortos, pai morto, mãe morta,/três irmãos mortos,/ mortos muitos amigos’’.
Não há revolta contra as perdas na lírica de Ruy Espinheira Filho, mas uma aceitação maior de tudo, como se arte pacificasse a existência. Vale a pena repetir: neste poeta, a memória é a cintilação da permanência, instrumento de transfiguração de perdas, incluindo os amores passados. Os mortos? Ah, esses são os que mais fielmente permanecem dentro de nós! Assim caminhou e vem caminhando Ruy Espinheira Filho com um olho no passado e outro no presente remodelado pela vasta experiência do artista e pela imaginação redentora, tão cara ao poeta. Como nos últimos versos de Manhã e Memória (A invenção da poesia), Ruy faz sua poesia:
buscando seus próprios despojos
comovidos
entre as ruínas do tempo.
Poesia do espanto e da leveza
Já Antonio Brasileiro tem a primeira e duradoura fase de sua poesia marcada pela busca do sentido da existência, pela procura de respostas de uma mente que parece não cessar de perquirir e até pelas crispações existenciais. Mas, eis que, agora, na maturidade, o poeta (quem sabe com o espírito, enfim, sossegado?), em lugar de buscar respostas para os desassossegos da vida, parece aceitar o mundo tal como ele é, com menos questionamento e mais compreensão, numa cumplicidade solidária com os homens e uma comunhão quase religiosa com a natureza.
Na maturidade e, em particular, na velhice, a lírica de Brasileiro derivou do espanto para a leveza. Se, antes, o poeta não queria saber de vidas sem assombros, “porque não há sossego’’, hoje seus filósofos são os bem-te-vis, a barítona rolinha fogo-pagô e outros passarinhos, como se pode ver no poema Pássaros de seu livro mais recente, Carta:
Os pássaros são deusinhos
que não cresceram ainda.
Nem vão crescer.
Para caberem em qualquer caderno.
Além de poeta, Antonio Brasileiro é também artista plástico, editor e pecuarista. No final dos anos 60, ele criou as Edições Cordel. Foi através delas que Brasileiro publicou, em 1974, o primeiro livro de Ruy Espinheiro Filho, Heléboro. Na época, o jovem poeta foi saudado por Carlos Drummond de Andrade como autor de uma “poesia concentrada e de fina expressão’’. Até hoje, 50 anos depois, Ruy recorda o dia em que foi a Feira de Santana pegar o volumezinho grampeado de 54 páginas. O poeta diz que o livro abriu com força seu caminho na literatura.
O prefácio é do próprio Brasileiro, que afirma: “Ruy, após Drummond e Pessoa, é o meu poeta preferido. Após também não é o termo correto – melhor: juntamente com. Poesia e metafísica são irmãs. Se acharem que metafísica não é nada, melhor ainda (…). Diriam os menos prolixos: forma. Ruy Espinheira Filho é um dos nossos melhores poetas. Esse é um que sabe, digo: que é’’.
Em 15 de junho passado, Antonio Brasileiro completou 80 anos de idade, dois a menos do que o amigo poeta. Ruy celebrou a data com uma crônica no jornal A Tarde, na qual escreve: “Antonio Brasileiro, poeta, teatrólogo, artista plástico, sempre foi também um grande animador cultural, motivando jovens autores, criando e dirigindo publicações, estimulando a entrada na universidade de muitos, alguns depois mestres e doutores… Considero-o um dos maiores poetas do Brasil na contemporaneidade. E agora ele completou 80 anos de vida. Portanto, um brinde ao grande poeta Antonio Brasileiro! Muito lhe devem as culturas da Bahia e do Brasil’’.
Um poema é a vibração de uma pétala na brisa
Como editor, Antonio Brasileiro foi o idealizador da revista Hera (Edições Cordel), uma das mais longevas publicações de poesia do Brasil, que durou de 1972 a 2005, reunindo jovens poetas de Feira de Santana e também de Salvador. Como a pequena planta que lhe empresta nome e que, sobre o muro, resiste ao sol e à chuva, a Hera também enfrentou a dureza das intempéries de um mundo infenso à poesia e à arte. E sobreviveu como um milagre da poesia.
Ruy Espinheira Filho tem mais de 40 livros publicados. Na vertente política, o destaque vai para Marinha (Heléboro), em que o poeta em plena ditadura militar, lamenta a presença de canhões defronte ao Quartel na bucólica paisagem de Amaralina. Em Revelação (O julgado do vento), a glorificação do passado: “Só o passado que/aguarda no futuro/revelará a limpidez/maior desta tarde/Ai que somos felizes/agora/mas não tanto/como amanhã, no passado.’’ O comovente poema O Pai (A Canção de Beatriz e Outros Poemas) é uma descida pessoal ao Hades, quando o poeta caminha pelo cemitério, “sob as árvores exaustas de velar os mortos’’, depois de 23 dias da morte do pai. No poema Neste Baile (A invenção da poesia), não importa o que ocorrer, o poeta continuará cantando “Até que a orquestra silencie,/os exaustos instrumentos dos nossos/corações.” Pois é, Ruy.
Antonio Brasileiro, no poema Das Coisas Memoráveis (Pequenos Assombros), parece dialogar com o amigo que vai buscar nas lembranças material para a sua poética: “Um dia, o mundo inteiro vai ser memória/Tudo será memória.’’ Em três versos de O Anjo no Bar, o desassossego da alma: “Onde buscar o fôlego não de um pássaro,/ mas do inventado para as tempestades/do espírito?’’. No belo As Chamas Passionais (dedicado à poeta Myriam Fraga), que abre o livro Licornes no Quintal, presenciamos o poeta cosmogônico: “Eu sou o que sonhava as mil estrelas/As mil estrelas no peito, uma paixão de fogo/a irromper no peito. Eu sou o sonho/dos homens, sou as galáxias dos homens/que uma noite se reconheceram. /Não me tragam essas vidas sem assombros: /porque não há sossego/As chamas passionais – como são fortes! /Ai, como são fortes! Não, não esperem por mim – que vou morrer/bebendo a luz da estrela Aldebarã; entre uma taça e outra/de agonias.”
Agora, se alguém perguntar a Ruy Espinheira Filho o que é o poema, ele poderá responder que é um rosto na chuva que te olha, ou ainda que é púrpura e diamância (título de um poema de Heléboro). Já Antonio Brasileiro, talvez singelamente responda:
Um poema é só a invisível
vibração de uma pétala
na brisa.