Edição 04
Agosto
2024

Versos e canções para a cidade amada

Dorival Caymmi o Buda Nagô da Bahia/Foto: Arq. Jornal da Bahia

José de Jesus Barreto

Numa bela tarde de sol, o mar inaugurando um verde novinho em folha, o carioca Vinicius de Moraes, vestido somente com um velho calção de banho, bebericando uma cachaça de rolha, escreveu os versos de uma canção que viria ser a mais tocada e cantada no país por muitos anos, gravada até no Japão. Tarde em Itapuã, de Vinicius e Toquinho, tornou-se um hino inesquecível como muitos outros inspirados por Salvador, essa amada menina baiana de 475 anos, que fascina, encanta, seduz e apaixona, desde sempre, grandes artistas, grandes poetas, grandes compositores.

Passar uma tarde em Itapuã... / Foto: Arquivo VivaBahia

São Salvador, Bahia de São Salvador/A terra
de Nosso Senhor/ Pedaço de terra que é meu/

São Salvador, Bahia de São Salvador/A terra
do branco mulato/ a terra do preto doutor/

São Salvador/ Bahia de São Salvador/ A terra
do Nosso Senhor/ do nosso Senhor do Bonfim/
Oh Bahia, Bahia Cidade do São Salvador

‘São Salvador’, de Dorival Caymmi (1914/2008)

Nos antigamentes, quando uma pessoa do interior ou de um estado vizinho ia para Salvador, a capital, costumeiramente dizia “vou pra Bahia”. A cidade grande, cercada de mar e bem cozida no caldeirão da Baía de Todos-os-Santos e orixás e encantados, era tudo. A terra do nosso Senhor do Bonfim, o São Salvador da Bahia.

A letra da canção nos remete a Mãe Aninha (1879/ 1938), batizada como Eugênia Anna dos Santos e sagrada Obá Biyi, mulher extraordinária, visionária e revolucionária, filha de Xangô, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá, em 1910, terreiro de nação Ketu/Nagô, tradição Iorubá. 

Ela dizia aos filhos da casa que queria vê-los com anel de doutor nos dedos; sabia bem que a verdadeira abolição só viria com educação, o conhecimento, ensino qualificado, boa escola para todos. Sonhava com o preto doutor.

Lembra-nos, também, o grande mestre, professor, historiador, pesquisador e escritor Cid Teixeira (1924/2021), memorialista e profundo conhecedor da História e histórias da formação, crescimento da cidade e de sua gente. Mulato assumido, Cid costumava dizer que nessa nossa Bahia não existia um só preto, um só branco limpo, somos todos miscigenados, a Bahia é pura mistura. Senhora e senhor sabenças, ícones.

O que é que a Bahia tem?

Riachão, o canto da velha São Salvador/ Foto: Manuela Cavadas

Ninguém cantou tanto e tão bem a Bahia como Caymmi, é certo – ‘Saudades da Bahia’, ‘Você já foi à Bahia’, ‘Dois de Fevereiro’, ‘No Abaeté tem uma lagoa escura…” e mais quantas canções da minha jangada que vai sair pro mar–, mas a tal decantada baianidade foi construída também por outros vários fazedores de artes múltiplas. Entre eles por exemplo, o Gordurinha, Waldeck Artur de Macedo (1922/1969), compositor, humorista, cantor, radialista, que em resposta aos gracejos preconceituosos dos sulistas, quando foi morar no Rio de Janeiro, imortalizou essa obra-prima ‘Baiano Burro Nasce Morto’:

O pau que nasce torto / não tem jeito morre torto/
baiano burro garanto que nasce morto…

Sem esquecer nosso Riachão, Clementino Rodrigues (1921/2020), sambista dos grandes, mais de 120 composições, um bem-humorado cronista da cidade e seus costumes. Deixou-nos pérolas, como ‘Retrato da Bahia’, que brinca com o sobe-e-desce do viver baiano, suas ladeiras e farturas:

Quem chega na Praça Cairu e olha pra cima o que é que vê/ Vê o Elevador Lacerda que vive a subir e a descer/
É o retrato fiel da Bahia, baiana vendendo alegria, coisinha gostosa de dendê/ Acarajé …
 

Tampouco olvidamos outro sambista de raiz, cronista de festejos, Walmir Lima, mais de 90 anos bem vividos que, entre outras preciosidades, cravou ‘Ilha de Maré’, gravada por vários intérpretes, aquele samba que mexe e que todo mundo sabe de cor:

Ah, eu vim da Ilha de Maré, minha senhora/ Pra fazer samba na Lavagem do Bonfim…
Aí de carroça andei, compadre/ Aí de carroça andei, comadre…

Nessa forja de baianidade, que fez de Salvador uma meca da cultura afro-luso-tupiniquim nas décadas de 50, 60, 70, contribuiu também um carioca, o compositor, radialista, animador e locutor esportivo Ari Barroso (1903/1964) que, dizem, nunca foi à Bahia. Mas, esperto e muito criativo, dos papos madrugadeiros com Caymmi, gerou e nos deixou sambas antológicos como ‘Na Baixa dos Sapateiros’:

Ô Bahia, ai, ai/ Bahia que não me saido pensamento/ai, ai

Esse ‘ai, ai’ é a cara de Caymmi. Eles dois foram os grandes responsáveis pelo sucesso internacional da moça cantora portuguesa Carmem Miranda, estrela holliywoodiana dos anos 30/40 do século XX, transformada em ‘baiana’, um signo; o torço na cabeça, os salamaleques de mãos e até o revirar dos olhinhos, sugestões de Caymmi, apaixonado pelos encantos e cantos da intérprete. É de Ari Barroso essa joia, ‘Tabuleiro da Baiana’:

No tabuleiro da baiana tem/
Vatapá, oi, caruru, mugunzá, tem umbu/
Pra ioiô/
Se eu pedir você me dá/
O seu coração, seu amor de iaiá? /
No coração da baiana tem:/
Sedução, canjerê, ilusão, candomblé…

Carmem Miranda, trejeitos à moda baiana/ Foto: Reprodução da capa de disco
Carmem Miranda, trejeitos à moda baiana/ Foto: Reprodução da capa de disco

Tudo junto e misturado

Salvador é diferenciada por conta de sua história, sua cultura – hábitos, costumes, sotaques, comida, vestuário, crenças, celebrações, jeito de ser. Única. A cidade tem tudo a ver com o mar, que a abraça quase por inteiro, com a sagrada Baía de Todos-os-Santos e inquices, orixás, voduns e encantados das matas e das águas doces também. Tudo mistura, mistério. Tudo sagrado.

Gerônimo: “Nesta cidade todo mundo é d’Oxum”/ Foto: Divulgação
Gerônimo: “Nesta cidade todo mundo é d’Oxum”/ Foto: Divulgação

Como tão bem compôs o saudoso Vevé Calazans, em parceria eterna com Gerônimo, inteiro e ativo, um canto, verdadeiro e autêntico hino da cidade, que todos cantamos – ‘É d’Oxum’ – como se estivéssemos navegando num majestoso saveiro pelas águas do Paraguaçu, circundando as ilhas da baía, mirando os mundos do Recôncavo.

Nessa cidade todo mundo é d’Oxum/
Homem, menino, menina, mulher/
Toda essa gente irradia magia/
Presente na água doce, presente
na água salgada/ E toda a cidade brilha…

E tudo mais tão bem dito, abençoado, na canção feita numa tarde de domingo e sol, no fluir do querer, pelos parceiros Luiz Caldas e César Rasec, em homenagem à cidade-mãe amada, em março de 2017, “Muito prazer! Meu nome é Salvador”:

Salvador é mistério/ É paixão imediata/ É o simples e o complexo/ Faz poesia com seu verso(…) 
Sua praia, seu jardim/ Com seu povo sempre a fim/ De viver, de amar, de curtir

De Caymmi até hoje, a cidade, Salvador, capital da Bahia, mudou muito. Verticalizou-se, inchou, entupiu-se de carros, prédios espelhados e viadutos, modernizou-se, acelerou, mas continua mantendo suas características históricas, encantos e desencantos: novidades e ruínas, diversidades, cores, cheiros, sujeira, riquezas e penúrias, religiosidades e pecados, desigualdades e mistérios. Igrejas antigas, com suas belas torres, templos evangélicos aos milhares pelas periferias e terreiros de axé revitalizados de orgulho ancestral. Sinos, gospel, batuques, assim seja, cabem todos, com respeito.

Viva a Cidade do São Salvador da Bahia, em seus 475 anos

José de Jesus Barreto, jornalista, escrevinhador,
nascido nos fundos da Igreja dos Mares, Calçada, Salvador, Bahia

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